Tive a oportunidade de ler este livro todo e gostei, acho
que o que está escrito retrata bem a situação da Policia Judiciária do Brasil
como um todo. Usei até alguns textos selecionados deste livro em um Hábeas
Corpus que solicitei a um Juiz de Cubatão para impedir que eu fosse indiciado
injustamente por um crime que fui acusado por um superior. Não tive êxito no
hábeas corpus, mas ao final do processo fui absolvido por INEXISTÊNCIA DE
CRIME, e o chefe de polícia (delegado) que me acusou, foi humilhado na sentença,
e menos de um ano depois, ele foi demitido da Polícia. Este livro fez parte de
uma história da minha vida. Parabéns Jorge Zaverucha! Neste livro esta revelado
várias faceta do poder de polícia que não constam nos manuais nem nos códigos
de leis, nem nos regimentos internos.
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Jorge Zaverucha
Polícia Civil de Pernambuco: O Desarfio da Reforma
Editora da Universidade Federal de Pernambuco
2003
SUMÁRIO
Introdução
Capítulo I.
Polícia, Democracia, Estado de Direito e
Direitos Humanos
Capítulo II.
Práticas Policialescas
Capítulo III.
Polícia, Constitução e Vácuo Institucional
Capítulo IV.
Polícia e Política Eleitoral
Capítulo V.
Inquérito: ícome de poder da Polícia
Judiciária
Capítulo VI.
Polícia Técnica-Científica. Ela Existe?
Capítulo VII.
Conclusão
Bibliografia
i
INTRODUÇÃO
A pior tirania é a exercida à sombra
da lei e com aparência de justiça—
Montesquieu.
Uma Polícia disciplinada é, em sua
essência, perigoso à liberdade; uma
Polícia indisciplinada é a ruína da
sociedade ---parodiando Burke.
Por que estudar a Polícia Civil de Pernambuco? Em primeiro
lugar, por reconhecer
a importância de um melhor entendimento sobre destacada
instituição coercitiva que faz
parte do sistema de segurança pública. Em segundo lugar,
pela ausência de estudos
institucionais sobre a Polícia Civil, em geral, e sobre a
pernambucana, em particular. Falase
muito sobre a Polícia Civil, mas ela é pouco conhecida.
Senti esta realidade na própria
carne. A Polícia Civil praticamente não tem memória
institucional. As informações sobre a
mesma são parcas e dispersas. Deste modo, os dados tiveram
que ser levantadas como num
quebra-cabeça daqueles com milhares de peças miudinhas...
Este livro tratará primordialmente de analisar o
funcionamento da Polícia Civil de
Pernambuco sem, todavia, perder de vista o contexto
sócio-político-econômico no qual ela
funciona. A crença de que o modo de atuação da Policia pode
ser separado do contexto
sócio-político-econômico é o que se chama de falácia de
autonomia. É impossível esperar
que a Policia seja reformada de acordo com os princípios
democráticos se o sistema político
não se move na mesma direção. Por isso, a maneira como a
Polícia funciona é um dos
indicadores da (falta de) saúde da democracia no país.
ii
A literatura sobre consolidação democrática, um conceito
por sinal ex post facto,1
devota pouca atenção para a relação entre instituições
coercitivas (em particular, polícia) e
democracia. Tal literatura concentra-se em questões
clássicas como o comportamento das
elites políticas no trato da coisa pública, o funcionamento
dos partidos políticos, a atuação
dos parlamentares no Congresso Nacional, o papel da mídia,
os movimentos sociais,
reforma do Estado etc. Pouca atenção, todavia, é dada ao
estudo de instituições coercitivas
e de como elas contribuem para a fragilidade da democracia
brasileira (Zaverucha, 2000).
Desde cedo constatei ser impossível estudar polícia como
sendo um assunto
meramente técnico destituído de conteúdo. Pelo contrário, a
polícia é uma instituição
fortemente política. O bem coletivo que ela oferta,
segurança, nem sempre é desejado
igualmente pelas diversas forças sociais e pela própria
polícia. E mais, a conjuntura política
em que a polícia atua reflete sobremaneira no modo como
este bem público é ofertado.
Este estudo procurou radiografar os óbices que impedem a
Polícia Civil de Pernambuco,
em especial no período 1996-1998, de funcionar
eficientemente dentro de parâmetros
democráticos. Foram privilegiados o desenho institucional
da Polícia e as decisões tomadas
pelo sistema político sobre seu funcionamento. Sendo aí
englobados os micro-fundamentos
da disputa política pelo comando da instituição
O capítulo 1 apresenta reflexões sobre o relacionamento
entre a Polícia, Democracia
e Direitos Humanos. Afinal, o presente estudo almeja
contribuir para que mudanças
institucionais na Polícia Civil a torne cada vez
democrática. Ou seja, cada vez mais
respeitadora do Estado de Direito e dos Direitos Humanos.
1 Lembro que antes do golpe militar liderado por Augusto Pinochet, o
Chile era considerado como exemplo
de democracia consolidada. Idem para a
Venezuela antes da tentativa fracassada de golpe, em 1992, liderado
por Hugo Chávez. Para uma crítica sobre o
conceito de consolidação, ver Schneider (1995:220-221).
iii
O capitulo 2 é uma prova do longo caminho a ser percorrido.
O capítulo denuncia a
existência, no início de novo século, de práticas
policialescas que denigrem a imagem da
instituição. Afinal, muitas delas são toleradas
informalmente numa rede de cumplicidade
interna e externa à corporação.
O capítulo 3 mostra como a inserção da polícia no texto
constitucional é um
incentivo para que a Polícia Civil continue a proteger
muito mais o Estado do que o
cidadão. Afora isto, o desleixo do Executivo e do
Legislativo em tornar nítida as regras do
jogo, leva a Polícia Civil a atuar em um vazio
institucional, gerando insegurança legal tanto
para seus membros como para o público em geral.
O capítulo 4 aborda o perigo do uso político-partidário da
polícia. Na medida em
que policiais usam a Polícia Civil como trampolim para suas
ambições eleitorais, a Polícia
passa a ser capturada por interesses particularistas. Isto
provoca o surgimento de várias
“polícias” dentro da Polícia prejudicando tanto a
independência quanto a eficiência da
instituição e restringe o acesso da mesma aos protegidos
políticos.
O capítulo 5 é inteiramente dedicado ao inquérito policial
no sentido de como o
mesmo é uma poderosa fonte de poder. Os delegados de polícia,
frequentemente, são
capazes de abdicar de uma polícia investigativa eficiente
desde que as atividades de polícia
judiciária sejam fortalecidas. Afinal, corre-se menos risco
de vida e pode-se tentar
equiparação salarial ao Poder Judiciário ou ao Ministério
Público.
O capítulo 6 pode ser lido, em parte, como uma prova do que
foi dito acima. A
Polícia Técnico-Científica enquanto foi subordinada à
Polícia Civil, foi a “prima pobre” da
Polícia Civil. Transferida para a alçada da Secretaria de
Defesa Social, continua sendo
dirigida por delegado e desprestigiada.
iv
No capitulo 7 são apresentadas as conclusões do estudo e
simultaneamente
apresentadas sugestões de mudanças. A Polícia Civil de
Pernambuco não deve continuar a
funcionar nos padrões atuais. Minhas propostas para uma
possível melhoria do
funcionamento da Polícia Civil estão, portanto, postas ao
debate público.
Este livro é fruto de uma pesquisa financiada pela Fundação
Ford. Sem seu apoio,
este trabalho seria impossível. Gostaria também de agradecer
ao Núcleo de Estudos de
Instituições Coercitivas, Democracia e Direitos Humanos
(NEIC) da Universidade Federal
de Pernambuco bem como ao GAJOP pelo suporte operacional
fornecido. Luciano Oliveira
e Paulo Moraes foram, como sempre, argutos interlocutores.
O incentivo do Vice-Reitor da
UFPE, Geraldo Pereira, será sempre lembrado. Dois revisores
anônimos me ajudaram a
melhorar o texto final. Como, de praxes, os erros e
opiniões são de minha inteira
responsabilidade.
Esta pesquisa contou com a colaboração do Delegado José
Edson Barbosa. Sua
presença pode ser sentida ao longo de várias páginas. A
responsabilidade por tudo que foi
escrito, todavia, é unicamente minha. Agradeço a outros
policiais civis e militares que,
gentilmente, me forneceram seus conhecimentos e gastaram
seu tempo comigo. Optei,
todavia, por não citá-los. Espero um dia, poder tomar
atitude diferente.
Irene, mais uma vez, emprestou-me sua sabedoria. Maya e
Marina, com seus
meigos sorrisos, mostraram-me a importância do pensar a
longo prazo.
1
CAPÍTULO I
Polícia, Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos
Os abusos, como os dentes nunca
se arrancam sem dores—Marques
de Maricá.
Política pública é uma decisão de cunho estritamente
político que visa distribuir
recursos públicos escassos para aquilo que o grupo que
controla o aparelho de Estado julga
mais importante. A Segurança Pública é uma das políticas
públicas que o Estado precisa
implementar.1
A Política de Segurança Pública é o braço
penal da sociedade. Nele pontifica
a Polícia que é um tipo particular de instituição que usa a
força. Daí sua visibilidade, para
produzir ordem definida pelos gestores da Segurança
Pública. A Polícia faz parte de uma
teia de outras instituições, como a família, igreja,
trabalho etc., encarregadas de manter o
controle social sobre o indivíduo e/ou grupo.2
A relação entre a Polícia Civil com outras instituições do
sistema de justiça
criminal—agências policiais, Ministério Publico, tribunais
de justiça e sistema
penitenciário-- não têm sido pesquisados sob a perspectiva
da Ciência Política com o vigor
necessário. Um dos motivos reside no fato do funcionamento
institucional da Polícia Civil
ser praticamente desconhecido. Como lembra Cathala (1975),
“a polícia é um organismo
muito mal conhecido no sentido de que se ignoram,
geralmente, a exata natureza de sua
1 James Q. Wilson lembra existir “uma grande diferença entre ciência
social e política pública; a primeira
procura compreender as causas profundas e
fundamentais do comportamento social, as quais, quase que por
definição, não são suscetíveis à
manipulação pela política pública” (Fukuyama, 2000).
2 Para Cohen (1985), controle social é “um conjunto de formas
organizadas por meio dos quais uma sociedade
dá resposta a condutas de grupos sociais e
também indivíduos aos que qualifica como desviados,
2
missão, suas possibilidades reais de ação e a extrema
dificuldade em desempenhá-la. Tal
ignorância não deixa de ser algo paradoxal, porquanto não
existe serviço público que tenha,
igual a ela, tantos contatos com o conjunto da população”.
Esse desconhecimento da instituição legal e o
comportamento real condenável de
alguns de seus integrantes contribuem para a impopularidade
e menosprezo que se dedica à
parte da Polícia Civil. A maioria dos policiais civis
parece não ter consciência da exata
noção da missão de sua instituição e da imensa
possibilidade que a Polícia Civil tem de
contribuir decisivamente para a efetivação do Estado de
Direito no Brasil.3
O presente estudo almeja contribuir nesta direção. Para
isto, nos deteremos em
aspectos organizacionais, gerenciais e operacionais da
Polícia Civil. E de como a natureza
do Estado brasileiro contribuiu para que a situação da
Polícia Civil chegasse ao lastimável
ponto em que se encontra. Alterações no modus operandi das
polícias podem ocorrer
paralelamente às mudanças nas condições
sócio-polítco-econômicas do país. Afinal, a
Polícia, que é um órgão político, recruta seus membros na
sociedade e, nesse aspecto,
espelha as marcas estruturais das relações sociais –
desigualdade, injustiça e exclusão.
A expressão Polícia Civil é um pleonasmo. Doutrinariamente
a Polícia, como órgão
incumbido de prevenir a ocorrência de infração penal e
reprimir as que não conseguiu
evitar que ocorressem, é uma instituição de caráter civil.
Não há necessidade, portanto, de
acrescentar a palavra “civil” ao substantivo polícia. Já a
expressão Polícia Militar para
atividades de segurança pública é um oxímoro, ou seja,
figura de linguagem que consiste
em reunir palavras contraditórias (silêncio eloqüente, jovem
senhor, de volta ao futuro etc.).
preocupantes, ameaçadores, delinquentes,
indesejáveis etc, e aos que trata de introduzir a conformidade com a
ordem social”.
3
Não há, no mundo democrático, polícias que sejam
denominadas Civil e Militar. Em
tais países, são conhecidas como Polícia Nacional,
Metropolitana, de Investigações etc., ou
Carabinieri, Gendarmeria, Guarda Republicana, Guarda Civil
etc. Muda a estética, mas a
investidura é civil. Ponto.
Por que o Brasil é o único país com governo democrático a
nomear suas polícias de
Civil e Militar tal como durante o regime militar? Muito se
tem estudado as Polícias
Militares, sua violência e práticas autoritárias. Pouca
atenção é dada a estas mesmas
práticas no seio da Polícia Civil. É como se ela
apresentasse uma cultura policial distinta e
não fizesse parte de um Estado que ainda mantém um legado
autoritário no seu aparato de
repressão.
Uma das principais instituições responsável pela segurança
do cidadão é a Polícia.
No caso em tela, a Polícia Civil. Polícias são instituições
que contribuem para revelar a
natureza sócio-política do país. Como livrar esta
instituição do seu legado autoritário e,
simultaneamente, reformá-la no sentido de ganhar mais
confiança da população em suas
ações, são tarefas urgentes de qualquer líder político e da
própria sociedade.
A idéia dos contratualistas, através do pacto social, foi a
de que cada indivíduo
abdicasse parte de sua liberdade em prol de um contrato
coletivo cuja finalidade maior era a
de garantir a todos os pactuantes o direito à vida.
Inclusive, a Carta de Direitos da
Revolução Francesa preconizou o direito à liberdade, à
propriedade e à segurança. O meio
de garantir a vida seria através do direito dos indivíduos
terem segurança. Portanto, uma
séria crise de segurança experimentada por um Estado
significa uma crise de democracia.
3 Pode haver Estado de Direito Democrático ou Autoritário como na
Prússia de Bismarck. Toda vez que
aparecer, a expressão Estado de Direito
quer-se referir a Estado de Direito Democrático, salvo indicação
contrária.
4
Um dos aspectos desta crise seria a persistente violação
dos Direitos Humanos,
inclusive por parte do aparato policial. A Polícia (Civil
e/ou Militar) brasileira deixou de
ser, se algum dia foi, solução no combate a violência para
ser parte do problema. Em países
autoritários a violência policial conta com o apoio do
regime político (Bayley, 1996). Em
países democráticos, a brutalidade policial representa uma
falha na responsabilidade seja do
policial, da instituição policial, do Estado ou dos três
fatores em conjunto. Afinal, a polícia
é um dos braços armados do Estado.
A violação dos Direitos Humanos não é algo exclusivo dos
regimes autoritários. A
truculência policial desafia os sistemas políticos. As
agências monopolizadoras do uso
legítimo da força, no sentido weberiano, mostram um
surpreendente grau de autonomia visà-
vis às autoridades democraticamente constituídas. Existia a
crença otimista de que com a
democracia poder-se-iam estabelecer significativos
patamares de respeito aos direitos
humanos.É que a visão liberal estipulou que, com o
surgimento da democracia, viria,
necessariamente, o Estado de Direito.4
Constata-se, entretanto, que, no Brasil e, particularmente,
em Pernambuco, a
transição democrática pouco mudou as práticas
convencionais, ultrapassadas, repressivas e
autoritárias das Polícias, as quais, sem controle
democrático, continuam a desfrutar de
excessiva autonomia. Autonomia aqui, não apenas do ponto de
vista dos princípios
democráticos, mas inclusive do ponto de vista funcional.
Deve ser reconhecido que, se as
práticas ilegais e contrárias aos Direitos Humanos
persistem, é também porque os órgãos
estatais (Ministério Publico e Justiça) responsáveis pelo
controle da legalidade das ações
policiais não cumprem com sua missão de controle da
atividade policial.
4 Cabe à Polícia ajudar na manutenção do Estado de Direito. Contudo,
a realidade mostra que nem sempre o
avanço democrático do sistema político
implica a criação de instituições coercitivas eficientes.
5
Quer queiram ou não, Polícias Civil, Polícia Militar,
Ministério Público, Justiça e
órgãos penitenciários coexistem em um mesmo contexto, o da
Segurança Pública, fazendo
parte do Sistema de Justiça Criminal. Em razão disso, as
ações de qualquer deles reflete na
atuação dos demais participantes. O que falha, pode ser
compelido por outro à correção.
Quando isto não ocorre, implica em falha da ação do
conjunto no objetivo comum a todos:
a diminuição da criminalidade.
Na matriz anglo-saxônica a conquista burguesa de direitos
civis (que garante os
indivíduos contra a opressão de outros indivíduos ou do
próprio Estado) antecedeu a dos
direitos políticos (que dão aos indivíduos o controle do
Estado). Portanto, as liberdades
civis vieram antes das liberdades políticas e sociais com
bem retratou Marshall (1970). No
Brasil, os direitos políticos avançaram, mas o poder
público não consegue garantir os
direitos civis para todos. Daí ainda persistir, no início
do século XXI, a expectativa pelo
resgate da cidadania.
Diante da constatação de que tal expectativa foi atendida
parcialmente e dado o
crescimento exponencial da criminalidade, cada vez mais as
pessoas começam a perceber
que para haver democracia é preciso que existam democratas.
Para a existência de
democratas é necessário vida, e para que haja vida é
preciso segurança pública. Caso o
Estado não consiga garantir o mais elementar direito
político, o direito à vida, a democracia
irá, paulatinamente, perdendo sua legitimidade, tornando-se
oca, ou seja, destituída de
consistência (Pereira, 2000).
Vide a Lei no. 9.249 de 26/12/1995 que, ao estabelecer o
protecionismo penal,
termina por promover a desordem.De acordo com a mesma, quem
sonega imposto
fraudulentamente, caso seja pego, poderá pagar a dívida sem
ir para o xadrez. A lei
estabelece que, neste caso, o pagamento extingue a
punibilidade. Enquanto isso, nos crimes
6
de furto, a legislação penal determina que o ressarcimento
do prejuízo ou a devolução da
res furtiva não
extingue a punibilidade, apenas constitui circunstância atenuante do
quantum aplicável de
pena. Porque esse tratamento iníquo? A sonegação fraudulenta de
impostos, como se sabe, é tipo de crime sofisticado, em que
se envolvem agentes públicos e
pessoas das classes mais favorecidas, enquanto nos crimes
de furto se envolvem os menos
favorecidos. É a legalização da desigualdade processual no
trato com diferentes tipos de
delitos e agentes criminais.5
Isso é fruto da cultura processualista não alinhada ao
interesse público, que
entroniza acima de tudo o excessivo formalismo processual,
e relega a verdade a segundo
plano. Ela só tem facilitado as atividades de hábeis
profissionais do Direito que primam
pela busca de soluções prescricionais. O policial sabe
disso e tem pouco incentivo para
investigar bem. Reformas ideológicas também serão
necessárias para eliminar as
iniquidades na provisão da segurança pública.
Estado de Direito pressupõe existência de segurança
jurídica e esta só pode
florescer quando há uma ordem conhecida e respeitada.6 Ordem no
sentido de que são
pessoas que convivem sob determinada forma e não apenas um
conjunto de leis. A Policia é
a instituição responsável pela segurança dos indivíduos e
de seu patrimônio neste tipo de
ordem. Caso as democracias latino-americanas, e brasileira
em especial, venham a ser
efetivamente implementadas, é condição necessária que o
Estado de Direito diminua a
distância entre a ordem legal formal e sua aplicação.
5 Imagine-se banqueiro responsável por fraude tenha sido sentenciado
a três anos de prisão. Poderá não ir para
a cadeia. Como assim? Quando o Ministério
Público envia o processo à Justiça, o tempo de prescrição
começa a contar. Caso o indiciado seja
considerado culpado, pode apelar, obviamente em liberdade. Dois
anos se passarão até que o juiz julgue.
Caso seja novamente considerado culpado, pode apelar ao Supremo
Tribunal de Justiça que levará mais dois
anos para julgar. Decorreram-se oito anos, e o processo prescreveu.
6 Prillaman(2000) mostra como o fracasso da Reforma do Judiciário no
Brasil, pós-1988, prejudicou o
crescimento econômico do país, por falta
de regras claras, e a confiança popular no Estado de Direito.
7
A distância entre o país legal e o país real aumenta à
medida em que direitos civis e
políticos, ardorosamente conquistados, não são aplicados na
garantia dos direitos básicos à
vida e à integridade dos indivíduos. Como mencionado,
acreditava-se que a implantação da
democracia
acarretaria o surgimento do Estado de Direito. Isto pode ser verdade para os
países desenvolvidos, mas não para os do Terceiro Mundo. O
Brasil, por exemplo,
conseguiu aumentar o usufruto da liberdade política através
de bem sucedidas operações de
transição de regimes autoritários para poliarquias, mas
apresentam uma substancial
diminuição da segurança individual, que ameaça o direito de
ir e vir dos indivíduos.
O que temos na verdade é um liberalismo elitista baseado no
fornecimento de
direito em bases particularistas (Pereira, 2000). Isto se
reflete duplamente: a) tanto no modo
como a coerção estatal é aplicada aos cidadãos; como b) na
dificuldade em controlar os
agentes estatais (policiais) e mantê-los responsabilizados
perante os eleitores. Afinal, se os
policiais, como cidadãos, presenciam a existência deste
elitismo, como exigir dos mesmos,
na qualidade de agentes estatais, um comportamento
universalista?
Responsabilização (doravante acountabilidade)7 sempre
envolve agentes e não
sujeitos. Isto porque o conceito de acountabilidade
pressupõe a existência de poder. A idéia,
portanto, é controlar o poder em vez de eliminá-lo. A noção
de acountabilidade política,
segundo Schedler (1999), implica duas conotações básicas:
(1) Responsividade, ou seja, a
obrigação do funcionário público tanto de informar como de
explicar o que está fazendo.
Isto faz com que o poder seja exercido de um modo mais
transparente em contraste com sua
opacidade;8
(2) Cumprimento da lei, ou seja, a capacidade
institucional de impor sanções
contra quem viola suas obrigações públicas.
7 Do inglês, accountability.
8 Caso os jogos de poder fossem de informação perfeita não haveria
necessidade de se falar em transparência.
8
A Polícia, juntamente com o Judiciário, é encarregada
disto. Cabe ao Estado de Direito
diminuir o fosso entre o país legal e o país real caso se
queira erguer uma sólida
democracia.Um sistema legal cujas regras são ignoradas
pelos agentes estatais torna-se
incapaz de obter a adesão dos cidadãos. E aí a Lei passa a
ser vista como instrumento de
controle social em vez de mecanismo de resolução de
disputas. Afinal, um sistema legal
democrático difere do autoritário pela sua capacidade de
induzir cooperação entre os
indivíduos em vez de desconfiança.
Leis, por sua vez, não devem ser concebidas como mera
variável independente, pois,
ela, por si só, é o resultado das escolhas estratégicas dos
atores políticos. Além do mais,
regras para serem efetivas precisam ser acompanhadas por
mecanismos de monitoramento.
Tais mecanismos devem evitar a impunidade, i.e., ocorrência
de violações à lei sem que
sejam noticiadas. [ocorrência de violações ás leis sem que
haja sanção. Seja por brechas na
Lei e/ou má investigação]
Magaloni (2000) lembra que o Estado de Direito soluciona
dois dilemas políticos
fundamentais. Provavelmente influenciada pelo que O´Donnell
(1998) chamou de
acountabilidade vertical e horizontal. O primeiro dilema
que ela chama de eixo vertical do
Estado de Direito compreende uma série de instituições
(Judiciário, Ministério Público,
Legislativo etc.) que limitam o poder do Estado vis-à-vis
os cidadãos. Quem viveu em
ditaduras entende bem o que é o Estado, e seus agentes,
abusarem dos cidadãos. Mas atores
privados podem também abusar do direito de outros cidadãos:
sem-terra contra
proprietários de terras (ou vice-versa), patrões contra
empregados (e vice-versa) e bandidos
contra suas vítimas (ou vice-versa) etc.
Isto leva ao segundo dilema, ou eixo horizontal do Estado
de Direito. Esta dimensão
consiste numa série de relações contratuais entre
indivíduos e instituições da justiça
9
criminal, dentre elas a Polícia Civil que é, também, a
Polícia Judiciária dos Estados.9
O
Estado não é mais a fonte dos abusos. Ele passa a exercer o
papel de árbitro, i.e., o
aplicador da lei.
Magaloni conclui que a ausência do Estado de Direito no
eixo vertical leva ao
estado arbitrário, enquanto tal ausência no eixo horizontal
resulta no estado de anarquia. É
como se o Estado deixasse de ser muito forte, como o era
durante o regime autoritário, e
passasse a ser muito fraco, mercê da sua incapacidade de
fazer prevalecer a lei
universalmente. Ambas situações são perigosas. No primeiro
caso, há um convite à
repressão que pode vir a garantir direitos, mas, também,
pode violar os direitos dos
cidadãos. No segundo, a anarquia, corrupção, clientelismo e
justiça privada10 (Estrich,
1998).
O fracasso na manutenção do Estado de Direito na dimensão
horizontal cria tensões
sociais e incentiva a desigualdade no provimento do bem
público. O mecanismo, segundo
Magaloni, é o seguinte: com o incremento dos conflitos
cresce a demanda pelos serviços de
polícia. Como o Estado é fraco para prover universalmente
tais serviços, os policiais tratam
de oferecer serviços através do mercado formal (abertura de
firmas de segurança), informal
(oferecimento da estrutura da polícia para firmas privadas
de vigilância 11, ou seguradoras
de automóveis ou, simplesmente, através de corrupção).
Qualquer que seja o método, esta
9 Deve-se a uma razão histórica o nome impróprio de Polícia
Judiciária. Na França quando foi instituído o
Procurador do Rei dos Tribunais, os que
trabalham com segurança pública passaram a ficar subordinados a
este Procurador. Tal equipe foi posta a
serviço da Justiça Penal e, desde então, o Poder Judiciário passou a
contar com uma Polícia Judiciária (Rocha,
2002). No Brasil, a Polícia Judiciária pertence ao Poder Executivo
e não ao Poder Judiciário! Nossa Polícia
Civil, além de constitucionalmente estar incumbida das funções de
polícia judiciária também é responsável
pela investigação e apuração das infrações penais, exceto as militares
(artigo 144, § 4o. da Constituição Federal).
10 Com a falência do sistema criminal cresce o apoio da população aos
grupos de extermínio e linchamentos.
11 No jargão policial, serviço “pf”, i.e., por fora.
10
situação promove a desigualdade perante a lei, pois tais
serviços de segurança serão obtidos
de acordo com o nível de renda dos indivíduos.
Caso não se consiga criar um Estado suficientemente capaz
de proteger os direitos
dos cidadãos da violação por parte de outros, instaura-se
uma situação, segundo a Teoria
dos Jogos, do tipo do “dilema do prisioneiro”. Nele, os
atores políticos são incentivados a
levar vantagem sobre o outro e não conseguem cooperar em
busca do bem comum. Mesmo
que a cooperação seja mais vantajosos para ambos os atores.
Como o receio da traição é de
tal monta, termina por prevalecer o egoísmo racional. Este
tipo de comportamento incentiva
a anarquia, e o uso da força bruta é, então, a alternativa
para a conservação de direitos.
Nestas condições a discussão sobre se o Estado brasileiro
deve ser mínimo ou não é
secundário. A própria existência do Estado é que está em
xeque seja por deficiência
gerencial ou por incapacidade de preservar a lei ou por
ambos. Registre-se que 30% da
população brasileira não possui registro de nascimento e,
conseqüentemente, de morte. Isto
representa cerca de 50 milhões de brasileiros sem atestado
de cidadania, ou seja,
“clandestinos” em seu próprio país, não fazendo parte das
estatísticas criminais (Salomon,
1996).
Um das conjecturas filosóficas do Estado liberal é que todo
poder pressupõe a
possibilidade de abuso e, consequentemente, violação dos
direitos do homem. “Sem
direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
democracia; sem democracia, não
existem as condições mínimas para a solução pacífica dos
conflitos”, lembra Bobbio
(1992). Um destes Direitos Humanos é o direito à segurança
física. Neste contexto, a
Polícia tem lugar destacado: é a principal instituição
estatal encarregada de garantir este
direito elementar.
11
A correlação positiva entre performance policial e
vitalidade democrática torna-se
óbvia. Contudo, a relação causal entre democracia e
Direitos Humanos está
sobredeterminada (overdetermined). Ainda não se
conseguiu encontrar o mecanismo,
especialmente em novas democracias, que explique o
aperfeiçoamento dos Direitos
Humanos. Embora se saiba que a democracia contribui para o
avanço dos Direitos
Humanos por várias razões.
Em primeiro lugar, a democracia é mais responsiva aos
interesses dos cidadãos
atenuando os conflitos entre os mesmos, e oferece canais
não violentos para sua resolução.
Com isso, diminui a repressão estatal. Numa democracia, só
excepcionalmente,
instrumentos de coerção física são utilizados e, assim
mesmo, para se contrapor às ações
daqueles que descumprem as normas democráticas
legitimamente estabelecidas. Não há
espaço para a concepção de segurança pública restrita e
simplista, garantida exclusivamente
pela força armada, policial ou militar. Segurança Pública
também abarca o provimento de
serviços básicos que na sua ausência são capazes de
provocar inúmeras mortes.12
Em segundo lugar, por aproximar os cidadãos da lei, a
democracia deveria protegêlos
melhor. Em terceiro lugar, a democracia admite o
afastamento de líderes políticos
propensos ao uso indiscriminado da repressão contra os
cidadãos. Em quarto lugar, as
liberdades civis necessárias ao funcionamento da democracia
admite que se tornem
públicos os abusos contra os Direitos Humanos. As luzes dos
holofotes da mídia e do
Parlamento permitem que a opinião pública exerça pressão
contra tais violações e intimide
futuros violadores. Em quinto lugar, cidadãos residentes
numa democracia são socializados
12 Em 1998, no Brasil, 10.844 pessoas morreram em decorrência da
falta de saneamento (água encanada,
esgoto e coleta de lixo). Enquanto o
Governo Federal lançou o Plano Nacional de Segurança Pública com
novos recursos além dos que estavam
alocados para o setor, o inverso ocorreu com o saneamento básico. Em
12
numa cultura política que enfatiza a resolução de conflitos
de uma forma não violenta e
incentiva o autocontrole diante de tais disputas. Em sexto
e último lugar, as sociedades
democráticas exigem o controle institucional social sobre o
legítimo monopólio estatal dos
meios de violência. Sem tal controle, o que é legítimo pode
se tornar ilegítimo, aumentando
as violações aos Direitos Humanos e ao Estado de Direito.
Inglaterra e EUA, de onde importamos paradigmas de
segurança pública, possuem
governos e regimes democráticos13 e, por
isso mesmo, Estado de Direito. Cabe a este,
mediante garantias do devido processo legal, conter
gradualmente o monopólio estatal da
violência. Digo gradualmente, pois como lembrou Elias
(1994), o processo civilizacional
nunca se completa pois está sempre ameaçado.
No entanto, a realidade brasileira, e de vários países
subdesenvolvidos, é diferente.
Estes países, inclusive o Brasil, possuem, no máximo, uma
democracia eleitoral. O Brasil
avançou em termos políticos, no sentido de que atores
políticos podem competir pelo poder
e os eleitores são livres para fazer suas escolhas.
Contudo, a existência de liberdades civis
ainda é incipiente, em especial as que protegem o direito à
segurança pessoal, legal e
econômica. A cultura democrática norte-americana foi
construída sobre a base de uma
sociedade de iguais onde se buscou a integração e o
consenso. Nas sociedades latinoamericanas
tal construção foi realizada em sociedades hierárquicas.
Disso resultou em
continuada luta contra a opressão estatal. Portanto, não há
uma tradição de cooperação
entre polícia e comunidade nestas sociedades (Tiscornia,
1998).
1999, o Governo Federal gastou apenas
9,45% do que foi orçado excluindo os “restos a pagar”, i.e., despesas
de um exercício que são pagas no ano
seguinte (Athias, 2000).
13 Regime é um conceito mais amplo que governo e refere-se “às regras
(formais ou não) que governam a
interação dos principais atores no sistema
político. A noção de regime envolve institucionalização, i.e., a idéia
de que tais regras são amplamente
entendidas e aceitas e que os atores pautam seus comportamentos de
acordo com as regras” (Mainwaring, 1992). Assim
sendo, o Brasil possui governo mas não regime
democrático.
13
Sucessivos governos eleitoralmente democráticos podem
conviver com Estado de
Direito formal. Ou seja, o arcabouço jurídico existe, mas a
lei é aplicada seletivamente pelo
Estado. Como a polícia é um dos braços armados do Estado, e
a Polícia Civil é, também,
Policia Judiciária, ela termina agindo caprichosamente .
Este ciclo vicioso, mas nada
virtuoso, tem como um de seus efeitos colaterais o
incremento da impunidade tanto em
relação aos ilícitos cometidos por delinqüentes habituais,
quanto por policiais. Como o
custo de ser capturado e condenado é baixo em relação ao
benefício da ação penal, há um
incentivo para o surgimento de novos delinquentes.
Impunidade essa que muito tem estimulado o aparecimento de
outro efeito deletério
bastante visível: o incremento da prática de crimes por
pessoas que nunca antes haviam
delinqüido.
O ponto de partida da impunidade ocorre no exato momento em
que por interesse
corporativo ou do clientelismo político14, ou,
ainda, sucumbência à corrupção, a polícia não
registra ou não apura corretamente um fato criminoso e,
assim, deixa fora do alcance da
Justiça integrantes seus, políticos, protegidos destes ou
corruptores que tenham infringido a
Lei. O ponto seguinte da evolução da impunidade está na
descrença do cidadão no aparato
policial, a ponto de, geralmente, optar por não promover o
registro de fatos criminosos, por
ser levado a pensar que não tem poder para conseguir que a
polícia dê importância à sua
denúncia.15
Como resultado disso, a tentativa de quantificar a
impunidade como sendo uma
percentagem de todos os crimes registrados cujos autores
não foram punidos, depara-se
14 Clientelismo é a regulação de troca ou fluxo de recursos materiais
e de intermediação de interesses baseada
em relações particularistas.
15 Cabe ressaltar a queixa de roubo de veículo e assalto em geral. É
que o documento policial constitui
condição necessária para ressarcimento
pela companhia seguradora.
14
com um problema de validade, em razão de estarem excluídos
do universo analisado os
fatos criminosos cujos registros os cidadãos não
promoveram, por não confiarem no
sistema criminal e no Estado de Direito. Os crimes não
registrados integram a chamada
cifra oculta da criminalidade, de difícil
estimativa.
A Segurança Pública almeja um estado antidelitual onde
impere o respeito às
normas legais e aos costumes. Ao se falar em prevenção de
delitos, a presença policial,
sobretudo a ostensiva, logo é lembrada como fator de
diminuição dos delitos. Em especial
após o programa “Tolerância Zero” posto em prática pela
polícia da cidade de Nova York
(Kelling & Coles,
1996; Bratton, 1998). Esta é uma visão
superficial, pois tal programa foi
realizado numa cidade com crescimento econômico, baixo
número de desempregados,
queda acentuada na população jovem e sistema penitenciário
capaz de absorver os
delinqüentes.
A Segurança Pública, na sua disposição
normativo-constitucional e, sobretudo, na
sua atuação, tanto no plano da incolumidade das pessoas
como na do patrimônio, revela a
natureza da ordem social de determinado Estado. E mais,
fornece os fundamentos para que
outras políticas públicas sejam construídas. Ou seja,
intervenções formais do Estado com o
intuito de produzir determinados resultados sociais desejáveis
como o aumento do capital
social. 16
Capital social e criminalidade são conceitos antagônicos.
Por definição,
criminalidade é exatamente a falta de capital social em seu
nível extremo. A criminalidade
pode ser combatida com ações repressivas e/ou adoção de
medidas que aumentem, cada vez
16 Segundo Fukuyama (2000), “capital social pode ser definido como um
conjunto de valores ou normas
informais, comuns aos membros de um grupo,
que permitem a cooperação entre eles. Se os membros de um
grupo passarem a esperar que os outros
irão se comportar de forma confiável e honesta, eles irão confiar uns
15
mais, o capital social, nas quais se incluem as políticas
de inclusão social e medidas
específicas de prevenção criminal. Colaboram no sentido
destas políticas as pressões
comunitárias que levem os indivíduos a cooperarem e os
recalcitrantes a voltarem à
sociedade. No Brasil, e particularmente em Pernambuco, a
opção tem sido pelo uso da
repressão exercida num quadro de anos de recessão, de
pobreza, de grande disparidade de
renda, de corrupção política epidêmica, de altas taxas de
desemprego, de urbanização, de
população juvenil e um sistema carcerário ineficaz e
defasado. Tudo isto tem se constituído
em fatores que contribuem para o incremento da
criminalidade e o declínio do capital
social.
Por definição da Constituição Federal (Art. 144), as
atividades de segurança
pública, um dever do Estado, são exercidas por intermédio
dos órgãos policiais, tendo por
finalidade “a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do
patrimônio”. Ao legislar sobre essa mesma questão, a
Constituição de Pernambuco (Art.
101), vai além da Constituição Federal e acrescenta, como
tarefas do Estado, assegurar a
liberdade e as garantias individuais como provimento da
segurança pública. Deste modo,
delineou-se, em Pernambuco, no plano normativo
constitucional, as funções originais do
exercício de polícia no campo da segurança pública. Esta
noção harmoniza-se com o que,
hoje, tem sido chamado de Defesa Social. Trata-se de uma
evocação do Código dos
Delitos e das Penas, elaborado sob inspiração da Revolução
Francesa.
Portanto, a idéia da polícia atuando como protetora do povo
é antiga. Entre nós,
todavia, foi há muito esquecida e, praticamente, abolida
pelas ações dos regimes políticos
antidemocráticos, em favor de uma ordem pública nunca
claramente definida pelas
nos outros. A confiança é como um
lubrificante que torna mais eficiente o funcionamento de qualquer grupo
ou organização”.
16
constituições. Tal ordem não se coaduna, necessariamente,
nem com a ordem legal, nem
com a ordem social, mas é colocada como prioridade e sob
ótica particular de cada
governo. O esquecimento é tanto que, ao se falar hoje de
polícia protetora do cidadão,
imagina-se que se está propondo o surgimento de uma nova
polícia, quando na verdade é a
restauração do sentido original de polícia.17
Tanto quanto se diz sobre as disfunções do sistema
prisional (Andrade, 1997),
também pode ser dito, e talvez até mais, sobre as polícias
estaduais, que se caracterizam por
uma eficácia invertida, comprovada pelas freqüentes
ocorrências de violência institucional
e pelo aumento vertiginoso da criminalidade e violência em
geral. O modo de atuação da
polícia civil pernambucana sempre foi convencional e
ultrapassado. Não existe uma polícia
contemporânea do presente.
Nesse quadro de situação, sem discussão ampla com a
sociedade ou segmentos
profissionais e estudiosos da questão da segurança pública,
o Governo de Pernambuco,
empossado em 2000, implementou mudanças na área da
segurança pública, justificando-as
em face da reconhecida exacerbação da criminalidade, no
estado, e da ineficácia do aparato
policial estadual. Extinguiu a Secretaria da Segurança
Pública (SSP), que apenas
subordinava a Polícia Civil, e, em seu lugar, instalou uma
Secretaria da Defesa Social
(SDS) que passou a ter ascendência também sobre a Polícia
Militar e Corpo de Bombeiro
Militar.
A SDS adotou uma filosofia de comando único, pela qual
aquela secretaria de
Estado passou a subordinar, administrativa e operacionalmente,
a Polícia Militar, o Corpo
de Bombeiros Militar e a Polícia Civil. Além do mais,
embora o Art. 101, §2o da
17 Curiosamente, o ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho, nomeou de Nova Polícia seu
projeto de ter uma polícia que respeitasse
os direitos humanos. O projeto não vingou.
17
Constituição de Pernambuco tenha criado o Conselho de
Defesa Social visando “o
estabelecimento da política de defesa social e a
coordenação das ações de Segurança
Pública”18, o governador Jarbas Vasconcelos nunca pôs tal Conselho em
funcionamento.
Seguindo Pernambuco, outros estados da Federação (Alagoas,
Pará, Santa Catarina)
adotaram o nome defesa social para designar suas
antigas secretarias de segurança pública
ou programa de integração das ações dos órgãos policiais
(Ceará, neste último caso). Até
municípios de grande porte (Curitiba/PR e outros de São
Paulo) criaram Secretarias
Municipais de Defesa Social, passando a interferir
vigorosamente, principalmente pela
atuação ostensiva de suas Guardas Municipais, na segurança
pública. Em que pese o nome,
não houve, por parte dos governos dos Estados,
particularmente o de Pernambuco,
preocupação em sequer discutir o verdadeiro significado da
expressão utilizada para batizar
suas mesmíssimas estruturas de segurança pública.
Como não houve mudanças de hábitos e de modus operandi policiais,
a concepção
sobre segurança pública continuou, praticamente, como
antes. Exceto por uma crescente
militarização da segurança pública no Estado. O primeiro
Secretário de Defesa Social foi
Adalberto Bueno da Cruz, general do Exército Brasileiro.19 Mediante
fracasso, foi
substituído por um coronel da ativa da Polícia Militar,
Iran Pereira dos Santos, que até
então era o Chefe do Estado Maior da sua corporação. O
coronel Pereira dos Santos era tão
imbuído de uma visão militarista sobre a segurança pública
que durante a greve da Policia
Militar, em 2000, mesmo sendo secretário de estado,
vestiu-se de traje de campanha,
18 Por tal diploma legal, segurança pública e defesa social são
conceitos distintos e complementares. Tal
concepção não foi aceita pelo Governador
do Estado de Pernambuco.
19 Em 29 de janeiro de 1999 foi aprovada a Lei no. 11.629. Seu artigo
10, parágrafo único, estipula que “são
declarados de natureza ou interesse militar
os cargos em comissão ou função de confiança da Secretaria de
Defesa Social, ocupado por servidores
militares”. Mercê deste artigo, o general Bueno pode trazer militares
do Exército para trabalhar na Secretaria
de Defesa Social, como se estivessem trabalhando em dependência
militar.
18
utilizado em período de guerra, para combater seus colegas.
Nem o próprio comandantegeral
da PM/PE tomou esta atitude, embora fosse, também, contra o
movimento grevista.
O mencionado coronel não ficou apenas nisto. Seu Plano
Integrado de Segurança
Cidadã de Pernambuco previa a criação de 320 Núcleos de
Segurança Comunitária.20
Muitos destes núcleos foram instalados em circunscrições
onde já existem delegacias. Por
sinal, algumas delas sem viaturas e estrutura para funcionar.
E mais, tais Núcleos se
transformaram numa espécie de Delegacias Militarizadas.
Como assim? Os Núcleos fazem
atos de Polícia Judiciária, ou seja, efetuam registros de
crimes ocorridos. Posteriormente,
fazem uma triagem dos casos que devem ser levados às
delegacias. Deste modo, afastam a
Polícia Civil do contato direto com a população, pois esta
passa a procurar primeiramente a
PM. Usurpa-se, deste modo, competência da Polícia
Judiciária fortalecendo ainda mais a
militarização da segurança pública.21
A atuação da Polícia Civil de Pernambuco (e as do restante
do país) em pouco se
aproxima das idéias de Defesa Social. Além de faltarem
conhecimentos científicos
multidisciplinares, é, sobretudo, no desrespeito aos
princípios da igualdade de tratamento,
há muito reconhecido internamente, e da legalidade na
prestação dos serviços de segurança
pública que se percebe quão longe se está de um real Estado
de Direito.
No âmbito do sistema legal, o direito à segurança é um direito
meio para que se
assegure o direito à vida de todo ser humano e não apenas
de uma minoria (Benevides,
1996). Quando esse direito só existe para uns e não para
todos, a força
do Direito definha.
20 Há também os Núcleos Integrados de Segurança Comunitária compostos
por efetivos da Polícia Militar,
Civil e Bombeiros. A integração será
difícil caos venha persistir a pequena presença da Polícia Civil e a falta
de espaço físico para a presença de
bombeiros e garagem paras suas viaturas.
21 O receio dos Núcleos serem, no fundo, um projeto de avanço da PM
sobre a Polícia Civil vem crescendo. O
governador Jarbas Vasconcelos contribui
para esta percepção ao afirmar que “na pratica não é mais para ter
delegacias. Os núcleos vão absorver as
delegacias...” Cf Diário de Pernambuco, 30 de agosto de 2002.
19
Afinal é difícil falar-se em liberdade onde as instituições
públicas funcionam
diligentemente apenas para certos segmentos sociais. No
Brasil, as diferenças no
provimento da segurança são tão radicais e crescentes a
ponto de indagarmos se já não
vivemos mais perto de uma sociedade de castas do que de uma
sociedade com
estratificação social.
A problemática questão da Segurança Pública pode ser
analisada em três dimensões:
1) Proteção (prevenção e investigação); 2) Perseguição
(abuso de poder, tortura etc.);22
3)
Proteção e perseguição. Comentemos a terceira dimensão. De
acordo com a mesma,
insegurança pública advém tanto da criminalidade externa
como do interior do aparelho
policial. Neste caso, relembro, a Polícia deixa de ser
instrumento da solução de específicos
problemas para ser parte do problema de segurança pública,
reproduzindo até as
desigualdades. Em vez de coibir as infrações à lei, a
viola, ora por motivação própria de seu
corporativismo, ora para atender ao clientelismo político
ou ceder às solicitações dos
agentes da corrupção.
Exemplo do clientelismo está na constatação de que 1.200,
ou seja, 8% dos 14,7 mil
delegados de polícia existentes no Brasil estão em situação
irregular. São os chamados
delegados “calças-curtas”.23 Sua inserção na Polícia
é manifestamente inconstitucional e
não conta com o apoio da Associação de Delegados de Polícia
do Brasil. Os “calça-curtas”
não são bacharéis em Direito, não foram aprovados em
concurso público nem passaram por
22 Há alguns anos, um estudante foi sequestrado em Minas Gerais, e
trazido para o Rio de Janeiro. Os
policiais “sequestraram” a mulher do
bandido e o seu filho foi espancado. Os policiais em contato com os
seqüestradores através de um telefone
celular ameaçaram a vida da mulher e de seu filho. Usando deste
expediente ilegal, o estudante foi
liberado e os policiais condecorados pela eficiência na resolução do
seqüestro. Evidentemente, que as violações
dos direitos humanos foram relevadas em função da ética do
resultado. Algum tempo depois, os distinguidos
policiais foram acusados de “sequestrarem” um
narcotraficante com vistas a extorsão.
Pegos foram expulsos da corporação. O policial herói de ontem, tornouse
o vilão de hoje.
20
treinamento em academias de Polícia Civil. Por sua
inabilitação técnico-profissional, cabos,
sargentos e até oficiais da Polícia Militar guindados à
condição de Delegados de Polícia
(Marques & Scolese, 2001) produzem inquéritos que, pelo
seu absurdo, têm levado, não
raras vezes, tribunais a mudarem o entendimento de que não
se pode argüir a nulidade de
um inquérito policial, em virtude de sua natureza
extraprocessual.
Em Pernambuco, o clientelismo marcou sua presença na
inauguração da Polícia de
Carreira, cuja Lei da Polícia Civil de Carreira (Lei no.
6.657 de 7 de janeiro de 1974)24
que
a instituiu determinava que o provimento de todos os cargos
iniciais só poderia ser
mediante concurso público. Apesar da determinação
normativa, os integrantes da primeira
turma de Delegados de Polícia (1974) foram todos nomeados
sem concurso público, tão
somente por indicação política. Três deles sequer tinham
curso superior25, no que
contrariou a mencionada Lei, que passou a exigir o curso de
bacharel em Direito como uma
das condições para ser delegado de polícia. Em 1975 é que
foi nomeada a primeira turma
de Delegados de Polícia, por meio de concurso público.
Antes mesmo que ocorresse o
segundo concurso público (1986), durante o Governo Marco
Maciel (1982-1986), outros 45
bacharéis em Direito foram nomeados delegados de polícia
sem concurso algum26,
simplesmente selecionados por indicações de políticos,
contrariando, mais uma vez, a Lei
que criou a Polícia Civil de Carreira.
Mesmo depois de instituída a Polícia Civil de Carreira,
ainda persistiram, em
Pernambuco, as designações dos chamados “delegados
calças-curtas”. O governador
23 Tais delegados atuam no Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão,
Paraíba, Paraná, Piauí, Sergipe e
Tocantins.
24 Modificou a Lei no. 6.425 de 29 de setembro de 1972.
25 Os que integraram a primeira turma de nomeados da Polícia Civil de
Carreira estavam, quase todos, no
exercício de cargos policiais
comissionados, de confiança do Governo, inclusive de Delegado de Polícia. Um
dos que não tinham curso superior era
influente deputado estadual.
26 Atos Governamentais números 2.647 a 1.649, de
15.07.1982, publicados no Diário Oficial do dia seguinte.
21
nomeava os “calças curtas” mediante indicação feita pelo
deputado governista majoritário
no município da designação.
Essas nomeações recaíam sobre policiais militares da ativa (quase
sempre) ou da
reserva. As patentes admitidas para as designações variavam
de sargento a major.
Abandonada, em 1986, a prática das designações dos “delegados
calças-curtas”,
continuaram as designações de suplentes de delegado de
polícia, comissários e suplentes de
comissário de polícia, também com exclusividade para o
interior do estado, pelas mesmas
vias de indicação. Para estes cargos eram muito comuns as
designações recaírem sobre
civis. Curioso é que o exercício destes cargos (e o de
“delegado calça-curta”) não era
remunerado.
O “quadro” desses voluntariosos policiais ad hoc chegava
a ser maior do que o
quadro de policiais civis de carreira. A atualização do
“quadro” tomava a maior parte do
tempo da Diretoria de Polícia do Interior, pois eram freqüentes
as substituições, que
demandavam a preparação do ato governamental, sua
publicação no Diário Oficial, a
confecção da Carteira de Polícia mediante a qual os
“policiais” tinham licença para portar
arma de fogo e entrar nos ambientes sujeitos à fiscalização
da SSP. Essas designações eram
muitíssimo trabalhosas e desprestigiosas para a polícia
civil, mas rendiam votos aos
políticos credenciados a fazer as designações.27
27 Em julho de 1990, o Secretário de Segurança Pública, João Arraes,
se encontrava em Arcoverde, onde se
realizava evento do “Governo nos
Municípios” (Governo Carlos Wilson Campos). Em determinado
momento, um deputado estadual se aproximou
do Secretário. O instou a que preparasse a nomeação de seus
delegados suplentes, comissários e suplentes
de comissário. “Se não conseguir a nomeação desse pessoal, eu
não me reelejo”. Querendo livrar a SSP
deste constrangimento, o Secretário encarregou o delegado José
Edson Barbosa de encontrar uma solução. No
mesmo decreto (Nº 14.446, de 02.08.1990) em que se autorizou
a SSP a criar e instalar, em cada
circunscrição policial, Conselhos Municipais de Segurança Pública, o seu
Art. 5º assim determinou: “Ficam extintas
as atuais funções de exercício voluntário e gratuito de Suplente de
Delegado de Polícia, de Comissário de
Polícia e de Suplente de Comissário de Polícia, dispensados os seus
ocupantes”. A partir de então, acabaram-se
as designações de policiais “calças-curtas” e o deputado, por
coincidência ou não, não se reelegeu.
22
O corporativismo policial continua a se manifestar em
outras áreas. Em setembro de
2000, o relator especial da Organização das Nações Unidas
(ONU), o advogado Nigel
Rodley, visitou o Recife com objetivo de colher informações
para um relatório sobre a
situação da tortura do mundo, que seria divulgado, dentro
de seis meses, pela ONU. A
visita foi antecipadamente comunicada pelos escalões
superiores da Polícia Civil aos
delegados. Mesmo assim, dois deles lotados nas Delegacias
do Ibura e Cavaleiro, na Região
Metropolitana do Recife, não tomaram suas precauções.
Rodley encontrou nas duas delegacias metropolitanas
visitadas equipamentos
suspeitos de serem usados em prática de tortura como:
palmatórias e cassetetes.28
Questionado sobre o que fora encontrado em sua delegacia, o
primeiro delegado visitado,
subestimando a capacidade de entendimento de seu
interlocutor, disse que “Estão aqui há
muito tempo. São coisas antigas que pertenciam aos presos”.
Rodley retorquiu: “Se são
coisas velhas, sem importância, por que não foram jogadas
fora?”.29 A crer na palavra do
delegado, terá sido feito um registro, até então
inexistente nos manuais policiais e de
criminalística, de uso de instrumento daquele tipo
(palmatória e cassetete) por delinqüentes
comuns para prática de crimes.
Em seu relatório final, Rodley menciona que embora a
primeira delegacia
visitada estivesse numa área de alto índice de
criminalidade, não encontrou qualquer
suspeito sendo interrogado. O delegado foi incapaz de
informar o tempo médio de
permanência de um detido na delegacia. Rodley registrou as
deploráveis condições de
trabalho existentes. O teto de uma das dependências estava
caindo; inquéritos estavam
28 “ONU suspeita de tortura em delegacia”, Jornal do Commercio,
7 de setembro de 2000.
29 Ibid. O comissário de uma das delegacias
visitada por Rodley, alegou que os objetos questionados pelo
visitante eram peças de inquérito,
supostamente usadas em homicídios. “Porque esses objetos não estão
identificados e etiquetados?”, questionou
Rodley.
23
empilhados em cima de mesas devido à ausência de estantes e
o banheiro usado pelos
policiais era imundo.
O delegado da primeira Delegacia visitada foi afastado de
suas funções, e o caso foi
parar na nova Corregedoria única, criada pelo governador
Jarbas Vasconcelos para unificar
as corregedorias da Polícia Civil e Militar. O Corregedor
Auxiliar solicitou o arquivamento
da sindicância, lembrando que o delegado era detentor da
Medalha de Mérito da Polícia
Civil, na classe bronze, que é concedida por relevantes
serviços prestados à segurança
pública. O então Secretário de Defesa Social, acatou o
pedido de arquivamento. A partir de
fevereiro de 2001, o delegado foi designado para dirigir a
outra delegacia sendo, pouco
tempo depois, lotado de volta à Delegacia onde Rodley o
visitou. Como lembra Peters
(1989), grande parte do futuro da tortura depende do futuro
dos torturadores. No Brasil, a
Lei de Tortura, de 7 de abril de 1997, raramente foi
aplicada. Pernambuco, portanto, não foi
uma exceção.
Esta não foi a primeira vez que o mencionado delegado fora
beneficiado. Ele foi
o primeiro delegado de carreira a ser condenado
criminalmente por prática de lesão
corporal contra um preso que estava sob sua guarda.30 Seu
caso deveria ter sido submetido
à existente Comissão Permanente de Disciplina (CPD), para que,
com base no Estatuto do
Funcionário Policial Civil, fosse apurado se a sua conduta
era ou não compatível com o
exercício da função policial. A CPD não foi convocada, e o
delegado terminou,
posteriormente, sendo promovido a delegado especial.
Outro delegado dirigia, embriagado, seu veículo quando, em
um canteiro de obras,
na Avenida Domingos Ferreira, Boa Viagem, Recife, atropelou
alguns trabalhadores em
30 Para azar seu, o preso era sobrinho do então governador de
Pernambuco, Moura Cavalcanti, e parente de
outro delegado da Polícia Civil de
Pernambuco.
24
serviço. Como resultado imediato, dois deles morreram no
local e outros ficaram
gravemente feridos e um terceiro morreu no hospital. A
Delegacia de Delitos do Trânsito
(Acidentes, na época) não instaurou o devido inquérito
policial, nem a Corregedoria uma
sindicância sequer para apurar a responsabilidade do
delegado. Por quê? O delegado
atropelador era o presidente da Associação dos Delegados de
Polícia do Estado de
Pernambuco – ADEPPE. O caso, em tese, ainda não prescreveu.
Noutro caso, delegada, embora indiciada uma semana antes
por homicídio culposo,
por ter atropelado, naquela mesma Avenida, um transeunte
sem tê-lo socorrido, foi
indicada para responder pela chefia de uma Delegacia
Distrital da Capital, em fevereiro de
2001.31 O caso do atropelamento só veio à tona alguns dias depois
do fato ocorrido, mercê
de denúncia de um radialista. Só então o carro utilizado
pela delegada foi periciado pelo
Instituto de Criminalística. O veículo era locado à Polícia
Civil. Pelos procedimentos de
praxe, a delegada só deveria utilizá-lo em serviço. Mas,
como ela mesma declarou, no
momento do acidente estava transportando sua filha para
compromisso particular. Detalhe
interessante deste caso: o delegado-chefe da Delegacia de
Delito de Trânsito estava, na
época, em plena campanha como candidato à presidência da
ADEPPE. O indiciamento por
ele corretamente procedido foi alçado a argumento de
campanha contra o mesmo. Perdeu a
eleição por quatro votos. O então chefe de Polícia Civil,
responsável pelas designações,
explicou que não via problema com as indicações dos
referidos delegados para cargos de
chefia de delegacia.32
Estes casos ocorridos com delegados de polícia mostram, por
um lado, um
corporativismo que se sobrepõe ao compromisso ético com a
legalidade e a igualdade de
31 O Ministério Público denunciou a delegada por homicídio culposo.
32 “Polícia Civil faz rodízios em delegacias”, Diário de
Pernambuco, 20 de fevereiro de 2001.
25
tratamento. É um corporativismo que esquece de
ensinamentos, ainda vigorantes, de
antigos manuais de polícia, como o que claramente diz que
“o policial não tem maiores
direitos civis que os outros cidadãos” (Freitas, 1929).
Como não bastasse a delegação
estatal do monopólio do uso da força à Polícia, esse
corporativismo, pelos exemplos
mencionados, parece estar requerendo o monopólio da
criminalidade para os seus
integrantes. Vê-se, por outro, o quanto é necessário criar
instrumentos de controle da
sociedade sobre a Polícia para que o corporativismo e
outras ingerências indevidas
(clientelismo e/ou corrupção) não impeçam o cumprimento
igualitário da lei.
Na segunda delegacia que visitou, Rodley não encontrou
qualquer suspeito
detido. As condições de trabalho também eram precárias. Um
agente policial chamou sua
atenção para a falta de material básico como papel
timbrado, máquina de escrever e
estantes. O mesmo agente mencionou o fato de, embora a
região ser violenta, os agentes
não possuíam colete à prova de bala. Por isso, ele decidiu
comprar um colete com recursos
próprios, bem como uma arma. Disse, também, inexistir regra
que determine a elaboração
de relatório quando a arma de fogo é acionada. As celas de
detenção eram completamente
escuras, tendo um buraco no chão que era usado como
sanitário. O delegado afirmou que
ninguém ficava ali detido mais do que três horas. Rodley
notou que, tal como na delegacia
anterior, não havia um livro de registro de pessoas presas33 onde
pudessem ser vistas datas
de entrada, liberação ou transferência para outro
estabelecimento policial.
O Relator Especial da ONU visitou ainda a Delegacia de
Roubos e Furtos. Nenhum
suspeito, novamente, se encontrava detido ou sendo
interrogado. As celas de detenção eram
largas e mal cuidadas. O delegado afirmou que as pessoas
detidas lá ficavam apenas
26
algumas horas. No entanto, ao consultar o Livro de Registro
de Presos, um delegado
terminou por reconhecer que um grupo de pessoas detidas foi
mantido lá por oito dias antes
de terem sido transferidas para um estabelecimento prisional.
O Estado policial implementa a lei passando por cima da
lei, como veremos com
mais detalhes no próximo capítulo.Com o enfraquecimento das
instituições de segurança
pública no Brasil, em especial a Polícia Civil de
Pernambuco, a pergunta é se nossa frágil
democracia vai ou não ceder seus poderes legítimos ao crime
organizado e/ou aos
instrumentos paramilitares de repressão, algumas vezes
atuando em parceria uns com os
outros. Já são contumazes os exemplos de policiais
exercendo a dupla militância, ou seja,
como agentes do Estado de Direito e como agentes
clandestinos da ordem.
São conhecidos países contemporâneos sem Forças Armadas,34 mas não
sociedades
modernas e complexas destituídas de polícia. A polícia é
uma instituição típica do Estado
Moderno,35
com o objetivo de propagar e proteger uma
concepção dominante de paz e
propriedade em seu território (Riener, 2000). Na ausência
desta concepção dominante de
paz, a polícia deixa de ser um instrumento de aplicação da
lei (enforcement) para se
transformar em agente coercitivo da minoria sobre a
maioria.
A polícia é um produto social e por isso mesmo faz parte de
um projeto de poder
que varia de acordo com as circunstâncias históricas. Toda
sociedade desenvolve
procedimentos que podem ser chamados a operar quando surgem
as disputas violentas de
33 Na delegacia não era utilizado, embora haja Instrução Normativa de
nº 02, de 1986, da antiga SSP,
instituindo Livro de Registro de Presos e
a obrigatoriedade do registro de toda e qualquer pessoa presa e
liberada.
34 O exemplo clássico é o da Costa Rica. Em 1989, logo após a invasão
dos EUA, a Força de Defesa
Panamenha (FDP) foi dissolvida. Seus
membros foram incorporados à nova estrutura policial criada. Caso
similar, ocorreu recentemente no Haiti.
35 Segundo a tradicional definição de Weber (1964), por Estado
deve-se entender uma empresa institucional
de caráter político na qual –e na medida
em que—o aparato administrativo leva adiante com sucesso uma
pretensão de monopólio da coerção física
legitima, tendo em vista a aplicação das disposições.
27
poder. Deste modo, a polícia é um bem social imprescindível
para a sociedade, pois
representa o teste da dominação. Por isso mesmo ela carrega
uma dimensão política, pois
intervém para favorecer a concepção de ordem pública predominante
no momento da ação.
Devido ao trabalho policial encerrar grande dose de
discricionariedade36 e de poder
monopolista, isto facilita a ocorrência de práticas brutais
e/ou corruptas. Deste modo, uma
polícia democrática é aquela que exerce o trabalho de
policiamento de acordo com o Estado
de Direito e com acountabilidade democrática e respeito aos
direitos humanos.
A Polícia, repito, exerce funções contraditórias: ela tanto
protege quanto reprime.
Protege uma ordem baseada em interesses coletivos comuns e
reprime os conflitos entre os
grupos que não aceitam tal ordem. Tal contradição é bem
capturada pelo conceito de uso
legítimo da força, ou seja, o aceite por parte dos atores
políticos do uso da força, mesmo
que seja contra eles, desde que respeitados os critérios de
controle social democrático. A
legitimidade, lembra Bobbio (2000), serve para distinguir o
poder de direito do poder de
fato. Democracias separam cuidadosamente o uso excessivo da
força (quando a polícia usa
a força em demasia) do excessivo uso da força
(circunstâncias nas quais a força é utilizada
com freqüência).
Já existe no Estado de Pernambuco uma região conhecida como
Polígono da
Maconha37 onde o aparelho de segurança do Estado não consegue
garantir o elementar
direito de ir e vir da população, diante do poderio das
quadrilhas de narcotraficantes. Foi
preciso que as Forças Armadas executassem a Operação
Mandacaru (novembro de 1999)
para tentar mostrar que o Estado existe. Como esta foi uma
ação de curto prazo, bastaram
as tropas federais se retirarem para que os problemas
retornassem. . Tanto é que o general
36 Discricionariedade é poder de ação ilimitado dentro de
prerrogativas estabelecidas.
28
Gilberto Serra, comandante da Operação Mandacaru, voltou à
região no dia 20 de março de
2001 para acompanhar de perto as investigações sobre as
ligações telefônicas feitas a partir
da Secretaria de Saúde da cidade de Salgueiro (PE). De lá
partiram ligações para cidades
situadas na rota do tráfico internacional de cocaína.38
Cresce a sensação generalizada de insegurança. Paira o
temor de que o Brasil,
mesmo não tendo uma guerra civil declarada,39 venha a
se tornar uma Grande Colômbia em
termos de número de mortes violentas. A Colômbia é uma
democracia eleitoral, pois elege
sucessivos governos democráticos há mais de trinta anos, no
entanto, cada vez mais
colombianos abandonam o país por não terem garantias de ir
e vir. Ou de uma Itália préoperação
“Mãos Limpas”. Naquela época houve uma nefasta conivência
entre setores do
aparato estatal italiano com o crime organizado.
37 O “polígono” é formado pelas cidades de Floresta, Carnaubeira da
Penha, Belém do S. Francisco, Cabrobó,
Orocó, Salgueiro, Santa Maria da Boa
Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba, Caraibeiras e Lagoa Grande.
38 “General vai ao Sertão para acompanhar investigações”, Jornal
do Commercio, 17 de março de 2001.
39 Não declarada, pois tecnicamente há guerra civil quando dois
grupos armados e com ideologias distintas
guerreiam entre si em busca do poder. No
entanto, se a unidade de análise for a de morte violenta por cem mil
habitantes, é possível se afirmar que
temos uma guerra civil.
29
CAPÍTULO II
Práticas Policialescas
As mudanças que afetam a polícia
passam pelas transformações do
próprio Estado—Charles Tilly.
Para qual propósito existe a polícia? Quais são os valores
que a polícia serve numa
sociedade democrática? Deve-se combater o crime com o
crime, a ilegalidade com a
ilicitude, mesmo que isto resulte em melhores índices de
resolução de crimes? Deve-se
investigar para deter o suspeito ou deter para,
posteriormente, investigar? A polícia deve
ser vista como uma instituição de controle social cujo
principal objetivo seria o de velar
pela aplicação eficiente das normas e leis da sociedade? Ou
deve a polícia ser uma
instituição submetida à hegemonia do sistema legal e
comprometida com o Estado de
Direito, mesmo que este comprometimento resulte numa
redução do controle social?
(Skolnick, 1975). Como pode este dilema da sociedade
democrática prejudicar o
funcionamento da polícia, institucionalmente e
individualmente, no sentido de fazer
prevalecer o império da lei? Se a polícia tem como função a
preservação do status quo e
por definição representa o Estado na sociedade, qual a
influência de um Estado ainda não
democratizado sobre a polícia? Como criar uma instituição
policial democrática onde não
existem sólidos costumes democráticos em vigor e onde
perduram abissais desigualdades
sócio-econômicas? De que modo a presente situação
brasileira, em geral, e a
pernambucana, em particular, afeta a preservação dos
Direitos Humanos?
30
O assassinato do preso Hélio José Muniz, 24 anos, ocorrido
no dia 14 de janeiro de
2001 no Pavilhão “J” do Presídio Aníbal Bruno,1 onde se
encontrava à disposição da
Justiça Criminal, trouxe à baila um detalhe de prática
policialesca muito antiga. Mormente
nas delegacias de grande acúmulo de presos, notadamente a
Delegacia de Roubos e Furtos.
Por policialesca entenda-se uma prática ilegal ou, no
mínimo, aética e/ou atécnica,
adotada por policiais. É o contrário da prática policial
institucional, assim entendida por ser
legal, ética e/ou técnica, pautada pelos princípios do
direito, inclusive os direitos humanos.
Uma prática policialesca tem seu uso adotado e mantido por
orientação ou, no mínimo,
consentimento da autoridade policial, quando são os
subordinados que se antecipam na sua
utilização. Neste ultimo caso, a autoridade dela toma
conhecimento e, se não a aprova
expressamente, a incentiva pela via indireta ao omitir-se
de tomar providências proibidoras.
O detalhe revelado através da Imprensa para o qual não se
chamou ainda atenção—
mas, certamente, poderá ser argumentado no momento em que
os familiares do preso
requererem indenização—é o fato de que Hélio José Muniz,
por ter bom comportamento
carcerário, fora “premiado” com o encargo de ser o
“chaveiro de cela” do Pavilhão “J”
onde estavam trancafiados outros 63 presos e ele próprio.
Ressalte-se que o preso
assassinado não era legalmente obrigado a aceitar o
encargo, nem tampouco, aceitando-o,
estava respaldado por lei a exercê-lo. Tomou tal decisão em
troca de favores dentro da
prisão.
1 O homicídio foi largamente noticiado pela imprensa. A grande
repercussão do assassinato deveu-se ao fato
de que o réu preso estava sendo processado
pela imputação de dezenas de homicídios (teria confessado ser o
autor de mais de 60), ter deposto na CPI
do Narcotráfico em condição especial (usou um capuz, cobrindo o
rosto e o pseudônimo de Palmeira), ter
acusado naquela ocasião, de envolvimento em homicídios e tráfico de
drogas um ex-prefeito, quatro comerciantes
e 13 policiais civis e militares, inclusive um delegado de policia.
Além disso, fora o personagem central de
um documentário intitulado “O Rap do Pequeno Príncipe contra as
Almas Sebosas”, no qual é apresentado com
imagem de justiceiro.
31
É praticamente impossível numa unidade de segurança pública
de pequeno ou
médio porte, como delegacias de polícia ou mesmo o Presídio
Aníbal Bruno, que uma
prática como esta não chegue ao conhecimento da direção.
Sobretudo por sua repetição
diária e conhecimento de todos os presos e funcionários
subalternos. Quando algo assim
acontece, é porque a direção orienta o procedimento
(autorização expressa/incentivo direto)
ou porque, sabendo que assim acontece, não toma providencia
proibitiva (autorização
tácita/incentivo indireto). No Presídio Aníbal Bruno, a
prática era de total conhecimento e
tinha apoio da diretoria, conforme se depreende da leitura
do Ofício no. 052/2001-DIR, de
23 de janeiro de 2001, do Diretor Executivo, em exercício,
ao Delegado presidente do
Inquérito Policial. Nele, o diretor do presídio, um Tenente
PM, explicitou os critérios para a
escolha do “chaveiro de cela”, que tem, inclusive, auxiliar
(fls. 90/91 do inquérito).
O “chaveiro de cela” lembra a figura do “preso de ordem”,
muito utilizada em
delegacias de grande concentração de pessoas presas para
averiguação. As prisões para
averiguação (detenção e reclusão de suspeitos sem prova
cabal e sem as formalidades
legais, isto é, mandado judicial ou situação de flagrância)
ainda são uma prática muito
utilizada. Ela só chama a atenção quando, em seguida,
ocorre ao preso fato mais grave do
que a prisão ilegal. Ou quando o preso tem posição social
de algum destaque, disposição
para reclamar por intermédio da mídia e recurso financeiro
para processar a autoridade
policial e/ou os agentes policiais pelo abuso.
A prática da prisão ilegal persiste, em que pese ter sido
instituída a prisão
provisória.2
Neste caso, não se exige da autoridade
policial, ao contrário da prisão
preventiva, a comprovação de que a pessoa para quem se
solicita a prisão provisória seja
32
autora ou de alguma forma tenha contribuído para a execução
do crime. Contudo, é preciso
uma parecer do Ministério Publico e prévia autorização
judicial. Na prática, todavia, a
autoridade policial prende primeiro e, posteriormente, faz
a solicitação da prisão ao juiz.
A instituição da prisão provisória foi a alternativa
adotada pelo legislador para
suplantar o lobby dos delegados de polícia que, para
se resguardarem dos problemas
decorrentes dos processos judiciais instaurados em razão
das prisões para averiguações,
queriam ter a prerrogativa de determiná-las. Tal como ainda
permite o Código de Processo
Penal Militar ao presidente de um Inquérito Policial
Militar. O que ainda é autorizado aos
militares, mesmo em tempo de paz, não foi concedido a
nenhuma autoridade policial civil.3.
As prisões ilegais têm persistido, em primeiro lugar,
porque entre os integrantes da
Polícia Civil há um entendimento, sobretudo dos ocupantes
de cargos de símbolo SP (nível
médio) e de muitos delegados de polícia, de que se seguir
estritamente o que a lei manda, a
polícia não conseguirá fazer quase nada. Isto é, não
conseguirá resultados significativos
frente à criminalidade e até seria uma grande importunação
para políticos, governo e
população o cumprimento da lei, em todos os casos
apresentados às delegacias. A
convicção disso é tanta que é freqüente, nas ocasiões de
preparativos de movimentos
paredistas da categoria , a discussão de propostas de
soltura dos presos ilegais das
delegacias e de lavratura de flagrante de todos os casos
cabíveis, como alternativa melhor
do que a greve. A sugestão desta medida tem sido
acompanhada de outra dirigida aos donos
do clientelismo, qual seja a de deixar de atender aos
pedidos de deputados e políticos em
2 É decretada por juiz para durar cinco dias, prorrogáveis por mais
cinco, nos crimes comuns (art. 2o. da Lei
no. 7.960, de 21 de dezembro de 1989), e
por 30 dias prorrogáveis por mais 30, nas investigações de crimes
hediondos (§ 3o. do art. 2o. da Lei no. 8.072, de 25 de julho de
1990).
3 Houve uma tentativa, fracassada, de aprovação de uma lei que desse
aos Delegados de Polícia a ampla
prerrogativa de poder determinar, sem
apreciação judicial prévia, embora admitindo a apreciação judicial a
posteriori, a prisão provisória de suspeito, no
curso da investigação, até por 30 dias.
33
geral. Noutras palavras, segundo esse entendimento, a
legalidade limita a eficácia da
polícia.4
Em segundo lugar, porque não tem havido fiscalização do
Ministério Público nem
ação de controle interno (da Corregedoria, quando ela
existia), no sentido deste abuso.
Estes controles interno e externo têm de haver para que
deixe de existir o que ora se
constata: o que está na forma da lei é uma polícia
legalmente instituída, mas o que em
concreto atua na sociedade é outra polícia: uma polícia
informal e infratora.
Em terceiro lugar, porque nunca foram investidos, com
suficiência, recursos
técnicos e de inteligência investigativa, bem como
capacitação e número de pessoal
suficiente para possibilitar aos responsáveis pelas
investigações condições para, antes,
reunir provas de autoria do crime e, só depois, requerer a
prisão5 do autor do crime e,
finalmente, prendê-lo.6
Em quarto, porque pedidos de prisão provisória, tal como
acontece com os pedidos
de prisão preventiva, não são atendidos prontamente, como
exigem as situações, em face do
longo e demorado caminho burocrático da Delegacia de
Polícia ao gabinete do Juiz. Tempo
suficiente para que seja violado o sigilo necessário ao
sucesso da investigação e à detenção
do suspeito.7
4 Esse tipo de entendimento é mais nítido ainda quando se refere ao
Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). É comum ouvir policiais dizerem que
não podem fazer nada porque o ECA não permite. Conclui-se
disso que a legalidade não é um princípio
muito cultivado na polícia e que a Academia de Polícia Civil não
conseguiu inculcar, nos seus policiais
alunos, o apreço por este princípio.
5 Mais das vezes, prende-se primeiro e, depois, requer-se a
decretação da prisão provisória.
e aproveitam para tentar obter confissões.
Esses policiais têm a confissão como ponto de partida de qualquer
investigação e a maior prova contra
suspeitos. Entendimento este que não tem sustentação, do ponto de vista
técnico, no sistema jurídico penal vigente
no Brasil.
7 Com o pedido formulado pelo delegado de polícia, os autos do
inquérito policial seguem para a Central de
Inquéritos do Ministério Público, para
oferecimento de opinião. Deste lugar, vão para o distribuidor de autos
de Justiça. Daí para o cartório da vara
criminal competente, onde o escrivão os faz conclusos ao juiz que, via
de regra, defere o pedido sem maiores
exames, fazendo os autos retornarem pelo mesmo caminho por onde a
ele chegaram.
34
Em quinto, porque a polícia judiciária, que é responsável
pela investigação do
crime, ante as pressões externas para elucidação dos casos
termina por se comprometer
mais com a prisão dos suspeitos do que com a investigação
bem feita.8 Quando a prisão
ocorre, cessam as pressões.9
Os repórteres de rádio são, geralmente, os primeiros que,
fora da polícia, tomam
conhecimento das prisões para averiguação, noticiando-as
diuturnamente. Raramente,
todavia, chamam atenção para a sua ilegalidade.
Freqüentemente esses repórteres, que
chamam esses presos de “almas sebosas”, elogiam policiais
por essas ações de prisão e
fazem críticas à Justiça, quando, em razão da ilegalidade,
naturalmente, manda soltar o
preso.
A conduta dos repórteres tem o condão de tornar aceitáveis,
por parte da população,
as prisões dos despossuídos (Oliveira, 1995). Realiza-se a
seguinte montagem midiáticopolicial:
os programas de notícias radiofônicas incutem medo na
população com narrativas
de perigo iminente, levando-as a perder as noções de perigo
real e potencial. Nesse clima,
os policiais prendem os despossuídos, os repórteres
divulgam o fato e elogiam a ação dos
policiais. Pela indução das pessoas a uma expectativa de
perigo iminente e à convicção de
serem vítimas potenciais, a população é levada a concordar
com as ações noticiadas sobre
os supostos agressores potenciais presos. Elogiados e até
apresentados como heróis, os
“famosos” policiais realimentam o noticiário com mais
prisões de despossuídos. Os
8 Ressalve-se haver uma resistência natural da polícia para apurar
certos crimes quando as vítimas da
violência também são os próprios
delinquentes. Mortos por causa de dívidas ou brigas, são crimes vistos não
como um problema, mas como solução.
9 As ilegais prisões para averiguações são toleradas pela sociedade,
sobretudo nas apurações de crimes de
roubo, latrocínio, seqüestro, estupro,
homicídio qualificado, crimes hediondos de grande repercussão na
imprensa.
35
repórteres com isso mantêm e até aumentam a audiência de
seus programas de porta-dexadrez
e, mais importante, o seu faturamento em publicidade.10
Caso deixem de elogiar os policiais e chamem a atenção para
a ilegalidade das
prisões, esses repórteres deixam de receber informações dos
policiais. Por esse arranjo, as
prisões das “almas sebosas” têm uma escabrosa utilidade. A
partir delas, cria-se um clima
de insegurança e as vítimas potenciais (a população) se
dispõem a conceder carta branca
aos policiais e os apóiam para fazerem o que quiserem
contra os agressores potenciais, até
mesmo o extermínio.
Não são apenas tais policiais que desrespeitam a lei. O
então governador Miguel
Arraes elogiou a utilização de presos na carceragem da Delegacia
de Roubos e Furtos
(DRF) na execução de trabalhos de reforma predial da
Academia de Polícia Civil.
Conforme registro do Jornal da ADEPPE, órgão oficial da
Associação de Delegados de
Polícia do Estado de Pernambuco. Em sua edição de janeiro
de 1997, página 9, há os
seguintes registros: “Vale realçar o trabalho de pessoas
recolhidas à delegacia de Roubos e
Furtos e que se transformaram em pedreiros e marceneiros na
Academia....A inteligência e
o compromisso com a cidadania do governador Arraes ficaram
estampados no trecho final
do seu discurso. Na conclusão de sua fala, ele disse:“Aqui,
além da construção material, se
construiu o entendimento mais largo entre presos,
empresários e policiais, unidos em um só
pensamento””.
Essa não foi a primeira vez que presos da DRF foram
utilizados para realizar
serviços em trabalho de construção da Academia de Polícia
Civil (APC). Mas foi a primeira
10 Esses programas têm alto índice de audiência e são vários, em
todas as faixas de horário. Na imprensa
escrita, também existe jornal em Recife (Folha
de Pernambuco) quem tem na noticia policial a âncora de sua
vendagem na faixa da sociedade dita
popular. No jargão da imprensa esse tipo de noticiário é chamado de
notícias populares.
36
a ser elogiada por um Governador e registrada em jornal. Um
dos presos denunciou ao
Ministério Público o fato de ter sido obrigado a executar
serviços na APC, não havendo
notícia do que tenha resultado a denúncia.
Em Pernambuco, não ocorre o mesmo tipo de problema de
carceragem que se
verifica em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesses estados,
por falta de vagas em presídios,
pessoas presas legalmente por ordem judicial são recolhidas
e superlotam as delegacias de
polícia. Estas, por sua vez, também têm os seus presos para
averiguações. Nesses estados
exemplificados, a responsabilidade pelo recolhimento e
manutenção dos presos nesses
locais inapropriados é da Justiça. Não deixa de ser uma
ilegalidade manter presos em local
inadequado e acima de sua capacidade de lotação, só porque
determinada por um juiz. Em
Pernambuco não existem presos da Justiça recolhidos em
delegacias de polícia. A
ilegalidade nesta questão, caso venha ocorrer, é da
exclusiva responsabilidade da polícia e,
por decorrência, do Poder Executivo.
A DRF, em Recife, é a de maior concentração de pessoas
presas para averiguações.
Para as investigações de sua especialidade (furtos, roubos,
latrocínio, receptação de coisa
roubada ou furtada) os presos do sexo masculino são
recolhidos em 14 xadrezes dispostos 7
à direita e 7 à esquerda de um corredor, para onde vão dar
suas grades, que são as mesmas
tanto para entrada como saída. Em época de grandes festas
populares (carnaval, Natal,
principalmente), esses xadrezes ficam superlotados. Já
houve ocasiões de alguns xadrezes
conterem até 30 pessoas em seu interior (uma área de
aproximadamente15m²) e até mais de
400, em seu conjunto. Em uma área anterior ao referido
corredor, existem dois outros
xadrezes contíguos, onde num são colocados presos do sexo
feminino, e, no outro, presos
sob suspeita de crime de receptação.
37
Evidentemente, abrir um xadrez, mesmo em condições normais,
para tirar ou
colocar mais presos, é uma ação que implica em risco à
integridade física e até mesmo à
vida do policial que executar essa tarefa. É um momento em
que pode haver uma reação
amotinada de presos. Esse risco será maior se o xadrez
estiver superlotado, como muitas
vezes acontece. O modo como são estruturados e dispostos os
xadrezes da DRF e o fato de
suas grades não permitirem o manuseio à distância não
possibilita ao policial a colocação e
retirada de presos com segurança. Além disso, executando
essa tarefa, os policiais
preocupam-se, ainda, pelo fato de que, como dizem, podem
ser “filmados”, i.e., podem ter
suas fisionomias fixadas pelos presos. Depois, reconhecidos
na rua ficarem expostos a uma
vingança ou dificuldade operacional.
Por outro lado, os presos que, muitas vezes, já chegam mal
cheirosos de sujos, são
recolhidos despidos.11 A cultura policialesca entende
que cinto, pernas de calça, cueca,
camisa e até cadarços de sapatos podem ser utilizados
eficientemente para suicídio, lesões
corporais ou homicídio, e que não há outro tipo de
procedimento possível, fora despir
completamente o preso. No cumprimento destes dispositivos
legais sempre se recolheu
despido qualquer preso do sexo masculino, não ocorrendo o
mesmo com os do sexo
feminino, salvo algumas exceções. A SSP foi extinta e,
consequentemente, o seu
11 O inciso XLII do artigo 31 do Estatuto de Policial Civil (Lei no.
6.425, de 29 de novembro de 1972),
declara ser transgressão disciplinar
grave, punível com pena de suspensão das funções do cargo por até 30
dias: XLII- Permitir que presos conservem
em seu poder instrumentos ou objetos que possam danificar
instalações ou dependência a que estejam
recolhidos ou produzir lesões em terceiros. Por outro lado dentro do
mesmo espírito, o penúltimo regulamento da
então Secretaria de Segurança Pública (inciso VI do art. 91 do
Decreto no. 3.167 de 1974) determinava ao
policial o seguinte: VI- proceder, antes de seu recolhimento,
rigorosa busca nas pessoas citadas no item
anterior (pessoas presas), retirando-lhes documentos, objetos,
dinheiro e outros valores, bem como
qualquer peça de vestiário ou objeto de uso pessoal que possam ser
utilizados para fugas ou auto-eliminação,
arrolando-as e registrando-os em livros próprios, para posterior
devolução Dispositivo idêntico existia,
também, nas atribuições das Seções de Carceragem ou de
Permanência e Carceragem de todas as
delegacias de polícia, exceto as Delegacias de Homicídios, de
Falsificações e Defraudações, de Crimes
Contra a Administração Pública, e de Acidentes de Veículos, que
não tinham seções desse tipo.
38
Regulamento, mas a prática continua, embora não tenha sido
editado ainda, um
Regulamento para a Polícia Civil.
Há consciência, também, de que obrigar os presos à nudez
coletiva e às condições
dos xadrezes são formas de humilhá-los e reduzir suas
resistências e vontades. Esta prática
foi contumazmente empregada pelo delegado Sergio Paranhos
Fleury, no DOPS de São
Paulo, quando presos tinham algo a dizer, mas se mostravam
relutantes. Deixá-los nu na
carceragem era um modo de quebrar-lhes o moral (Souza,
2000). Por outro lado, como
delegados, muitas vezes não exercem controle sobre a
entrada, permanência e saída de
presos, já houve casos de muitos deles permanecerem por
tempo longo o suficiente para
causar-lhe desorientação de tempo e de lugar. Essa prática
também é utilizada como forma
de fazer com que o suposto delinqüente seja impedido de
praticar delitos, depois de solto,
pelo tempo em que ficar psicologicamente desorientado.
Os presos despidos têm piorado sua condição de higiene pelo
fato dos xadrezes não
terem chuveiro para tomar banho e, freqüentemente, estarem
com a cloaca entupida. Os
xadrezes e os presos mal cheirosos é uma situação que,
naturalmente, causa repugnância a
qualquer um. Tal situação leva o policial a pensar que o
contato com aquele ambiente e as
pessoas dali pode carrear doença (em geral, sarnas e
gripes) para si e, consequentemente,
para os seus familiares. Sem dúvida um risco importante o
suficiente para ser levado a
sério. Não apenas nesta situação verifica-se o desinteresse
da polícia civil, enquanto
instituição, com a segurança e a integridade dos policiais.
As indústrias são obrigadas pelo
Estado a manterem comissões internas de segurança do
trabalho, para evitar acidentes. Na
polícia, falta obrigatoriedade de algo similar para
descobrirem-se métodos e meios que
possibilitem ao policial agir com sua segurança pessoal
resguardada.
39
Para evitar exporem-se a esses riscos na DRF, os policiais
escolhem um dos
recolhidos e o designa preso de ordem.12 Cabe ao
mesmo, sob ordem do policial
responsável pela carceragem, executar ações operacionais da
rotina de trabalho nos
xadrezes13, inclusive até apaziguamento em desentendimento e brigas
entre presos14, tarefas
que são próprias de policiais ou de auxiliares de serviços
gerais 15. Além das tarefas
mencionadas, o preso de ordem é utilizado para ouvir
as conversas ocorridas dentro dos
xadrezes e transmiti-las, sobretudo as que se referem a
ações criminosas, aos policiais 16.
A escolha do preso de ordem não é feita
aleatoriamente. Em primeiro lugar, ele tem
de merecer a confiança do policial encarregado da
carceragem. Justamente por ser, como
estranhamento é dito, um preso de confiança, é que é
escolhido. Tem de ser corajoso e ter
capacidade de se impor aos demais presos em várias
situações de confronto e, sobretudo, se
dispor a ser dócil ao comando dos policias, fazendo tudo
quanto os policiais mandarem. Por
12 O nome tem a ver com o fato de que preso cumpre ordens do
responsável pela carceragem. É designação
que guarda semelhança com a militar ajudante
de ordens.
13 Abrir e fechar os xadrezes do corredor para colocação e retirada
de pessoas detidas; apanhar roupa para
vestir preso que tem de ser apresentado
para depor no cartório ou liberado; apanhar em área externa aos
xadrezes; fornecer água em balde para os
demais presos beberem; comandar a limpeza eventual dos xadrezes
executadas por outros presos.
14 Quando ocorre uma confusão, o preso de ordem ameaça os
envolvidos de serem colocados em xadrez com
presos mais perigosos, onde os mais fracos
e menos perigosos têm medo de serem colocados.
15 Constrangendo o preso de ordem a executar tarefas que são
atribuições próprias suas ou de qualquer outro
servidor da delegacia, o policial infringe
o inciso X, do art. 31, do Estatuto do Policial Civil (Lei no. 6.425, de
29 de setembro de 1972), que assim declara
ser transgressão disciplinar, considerada grave, punível com pena
de suspensão das funções por até 30 dias:
X- Cometer a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos
em lei, o desempenho de encargo que lhe
competir ou a seus subordinados. A prisão ilegal de qualquer pessoa
também é considerada transgressão
disciplinar grave e punível com suspensão de até 30 dias, pela descrição
do inciso XLVII, do mesmo art. 31:
Atentar, com abuso de autoridade evidente, contra a liberdade de pessoa
ou contra a inviolabilidade de domicílio.
É “apenas” isto, se desconsiderarmos o fato de que a prisão ilegal de
cada pessoa ali recolhida também é, por si
só, um crime.
16 Já ocorreram episódios de sua utilização no espancamento de outros
presos para que dêem o serviço, ou
seja, prestem informações.
40
fim, não ter sido preso por fato criminoso gravíssimo ou
ocorrência em que tenha alcançado
notoriedade na imprensa.17
A condição de preso de ordem é uma fase de limbo, na
qual a pessoa detida
permanece de uma a duas semanas e, em seguida, é solta.
Quando isso ocorre, outro preso
de confiança já está escolhido e assume a posição do
anterior, na área dos xadrezes. Por
outro lado, a condição de preso de ordem possibilita
algumas vantagens para o preso
decorrente da troca de favores que ela implica: o preso faz
o que os policiais mandam e, em
troca, é colocado em xadrez separado ou no amplo corredor
de acesso às celas, ou, quando
muito, em xadrez sem presos perigosos e até menos cheio e
menos imundo. Além disso tem
permissão para tomar banho e ficar vestido. A sua situação
jurídica pode ser aliviada na
investigação do fato pelo qual está preso (“levando mofo”),
seja não se pedindo sua prisão
preventiva ou até mesmo não procedendo à formalização do
inquérito policial sobre o seu
caso. Liberado, pode até, eventualmente, passar a ser informante
do policial com quem
tratou.
O informante, também conhecido como “araque de polícia”,
não é um cidadão
consciencioso que tenha interesse em ajudar à polícia ou à
comunidade. Na realidade, suas
informações, nem sempre confiáveis, são trocadas por
vantagens materiais ilícitas e
acobertamentos de seus próprios delitos.18 Acobertado
por policial, como que tem licença
17 Geralmente, não passam de lanceiros, de praticantes de furtos
simples e de pouca monta. Os critérios de
gravidade da imputação e notoriedade não
foram observados na escolha do preso Hélio José Muniz para
chaveiro de cela.
18 O Delegado José Edson Barbosa, em 1999, investigando policiais de
uma Delegacia de Polícia, tomou o
depoimento de um informante de polícia. O
informante, durante a inquirição feita com a presença de um
Promotor de Justiça, declarou que, em
troca de suas informações, ficava com parte do que era apreendido nos
“serviços” que apontava, seja produto de
furto, roubo ou apreensão de cocaína. Nesta mesma investigação,
ficou constatado que informantes de
policiais foram utilizados para forjar flagrante de crime não ocorrido,
simplesmente para incriminar alguém que
resistira a uma tentativa de extorsão dos policiais daquela
delegacia. A Corregedoria de Polícia Civil
deveria, a partir daquelas declarações, ter determinado instauração
de sindicância. Não tendo ocorrido isso, o
Ministério Público deveria requerer sua instauração. Nem uma nem
outra providências aconteceram.
41
para praticar ilícito, geralmente leves, sem ser prejudicado
por indiciamento em inquérito
policial. Principalmente os policiais que trabalham em
investigações de crimes contra o
patrimônio, entorpecentes e setores operacionais de
informações têm, quase todos, seus
próprios informantes.
Valendo-se do conceito foucaultiano de delinqüência útil,
pode ser dito que o
informante é um delinqüente útil, mas nem sempre. Nessa
relação policial-informante
instala-se um círculo viciado de resultados criminosos
progressivamente mais graves.
À medida que mais serviço19 levanta, o informante
vai comprometendo o policial,
mantém-se praticando os seus delitos pessoais e, ao mesmo
tempo, vai acumulando, cada
vez mais, informações sobre a conduta errônea do policial
que é seu contato. Transforma-se
num “arquivo vivo”, que, a qualquer tempo pode fazer
revelações comprometedoras sobre
os policiais com quem se envolveu. Se houver séria ação de
controle de policial interno
(Corregedoria) o informante passa, então, a ser considerado
um perigo para o esquema
policialesco e deixa de ser, consequentemente, útil.
Torna-se algo descartável, “arquivo”
que deve ser “queimado”, ou seja, alguém que deve ser morto
antes que fale sobre o que
sabe que cause estragos. Quase todos os policiais dessas
áreas têm seus próprios
informantes.20
A prática do preso de ordem revela faceta perversa
de uma cultura entranhada, em
relação a qual nunca se realizou qualquer trabalho
abrangente para extirpá-la da
19 Informações sobre fatos criminosos e sua autoria, localização de
objetos de furto ou roubo e de criminosos
procurados.
20 O Delegado José Edson Barbosa, quando foi titular da Delegacia de
Homicídios, relata que certa vez lhe foi
apresentado uma pessoa presa por ter
assassinado um indivíduo. O condutor do assassino, era um informante
ligado a um determinado delegado. Ao fazer
a checagem do arquivo do condutor na Delegacia de Capturas,
constatou que havia um mandato de prisão
contra ele, por homicídio. O resultado foi desconcertante: condutor
e conduzido foram recolhidos
simultaneamente ao Presídio Aníbal Bruno, apesar dos apelos em favor do
condutor-informante.
42
mentalidade dos policiais civis.21 É
evidente, nesta e noutras práticas, quando não uma
flagrante ilegalidade (prisões não judiciais), condutas
pautadas por normas de conteúdo
contrário aos Direitos Humanos (o desnudamento de presos),
pelos quais também não há
demonstração do menor apreço; tem-se, de um lado,
comportamentos que denotam falta de
formação ética, e, de outro, estruturas normativas e
físicas induzindo, forçando ou
reforçando o comportamento errático.
Em sólidas democracias, a polícia é uma agencia de controle
social que mantém tal
controle através de aplicação da lei. A Polícia Civil, como
vimos, é uma instituição que
pode funcionar tanto como agência de controle social como
de descontrole social. Nesta
situação, o Estado de Direito Democrático é um mero
apêndice. Numa democracia, se o
exemplo e a norma não funcionam o sistema de segurança fica
caótico. Resulta que a
fraude e a força tendem cada vez mais a sobrepor-se à lei,
ao Estado de Direito e aos
Direitos Humanos. Tem-se a atuação de uma polícia informal
infratora, no lugar de uma
polícia institucional, a que está descrita em Lei e que,
pela Lei pauta a atuação.
21 Os cursos de direitos humanos que se tem realizado é, sem dúvida,
um esforço que objetiva mudanças na
mentalidade do policial. É, entretanto,
pouco ainda, diante de tantos apelos e pressões inclusive e,
principalmente, estruturais em sentido
contrário.
43
CAPITULO III
Polícia, Constituição e Vácuo Institucional
No Brasil, temos ótimas leis, mas
falta uma: a que diz que as outras
leis devem ser respeitadas---
parodiando o presidente do Peru,
Nicolás de Piérola, 1895-1899
Temos um problema político que urge ser politicamente
resolvido. Deve ser
lembrado que a Constituição Federal de 1988 reuniu no mesmo
Título V (Da Defesa do
Estado e das Instituições Democráticas), três capítulos: o
Capítulo I (Do Estado de Defesa e
do Estado de Sítio), o Capítulo II (Das Forças Armadas) e o
Capítulo III (Da Segurança
Publica). Nossos constituintes não conseguiram se
desprender do regime autoritário recémfindo,
e terminaram por constitucionalizar a atuação de
organizações militares em
atividades de polícia (Polícia Militar) e defesa civil
(Corpo de Bombeiros), ao lado das
polícias civis. As polícias continuaram constitucionalmente, mesmo em menor
grau, a
defender mais o Estado que o cidadão.
E mais: manteve, em linhas gerais, a estrutura do aparelho
policial criado durante o
regime militar. Além disso, misturaram-se questões de
segurança externa com questões de
segurança pública, ou seja, tornaram a militarização da
segurança pública algo
constitucionalmente válido. Também se manteve a supremacia,
alcançada durante o regime
44
militar, da Polícia Militar sobre a Polícia Civil1 em
número de homens, adestramento e
poder de fogo.
Como se não bastasse, pelo Art. 142 da atual Constituição
Federal, é atribuída às
FFAA competência para atuar no campo da segurança pública,
por solicitação de qualquer
dos poderes constitucionais. Como o §1º do artigo mencionado
defere o detalhamento da
atuação militar no campo da segurança pública a uma lei
completar, é a Lei Complementar
nº 69, de 23.07.1991 que dispõe sobre o emprego das FFAA
para garantia da lei e da
ordem.2 Curiosamente, a segurança pública é classificada no Art. 6º
da Constituição
Federal como um dos direitos sociais. Em face do disposto
no Art. 142, é o único direito
social garantido pelas FFAA.
Antes do advento do regime autoritário (1964-1985), as
Policias Militares tinham
um papel secundário no trato das questões de segurança
pública pernambucana.3 Inclusive,
ficavam aquarteladas nas principais capitais do país. Não
lhes cabia o patrulhamento das
ruas. As Policias não-militares tinham o papel primordial.
Cabia às mesmas, tanto o papel
ostensivo (incluindo o trânsito e a segurança de
dignitários), como o investigativo e, pela
atuação do Delegado de Polícia investido de função
jurisdicional, realizar a instrução
criminal nos processos sumários.
A partir, principalmente de 1969, auge da repressão
política, houve uma reversão
nas funções das polícias. As Policias Militares saíram de
seu aquartelamento e foram
1 No Brasil, na denominação Polícia Civil, o adjetivo civil tem o
significado de não-militar. Ao contrário, por
exemplo, da Guarda Civil espanhola em que
prevalece a origem etimológica da palavra civil: civita, civitatis,
isto é, cidadão. Ou seja, guarda do
cidadão, não obstante exercida por militares de polícia.
2 Esta lei foi aprovada após a intervenção do Exército numa greve na
Cia. Siderúrgica Nacional em Volta
Redonda, culminando com a morte de três
operários. Pela referida lei, somente o Presidente da República
pode ordenar a intervenção castrense em
assuntos de manutenção da lei e da ordem. Para exemplos em que tal
Lei é violada vide Zaverucha (2000).
3 Em 1903, através do Decreto no. 4.762 de 05 de fevereiro, foi
criada a Guarda Civil. Passando a existir,
portanto, duas polícias: a Polícia Militar
e a Polícia Civil.
45
lançadas nas ruas com o objetivo de fazer o papel do
policiamento ostensivo e manutenção
da ordem pública aí incluindo o controle do tráfego de
veículos. Foi retirada prerrogativa
jurisdicional do Delegado de Polícia para realizar a
instrução dos processos sumários.
O Governo Federal extinguiu as Guardas Civis do Brasil,
passando as atribuições
destas para as PMs.4 O instrumento utilizado para o
ato foi o Decreto-Lei federal no. 1.072
de 30 de dezembro de 1969, sancionado pelo então presidente
da República Emílio
Garrastazu Médici, e patrocinado pelo ministro da Justiça,
Alfredo Buzaid, e o chefe da
Casa Militar, general-de-brigada João Figueiredo, logo após
o anúncio do Ato Institucional
no. 5 (AI-5). Portanto, ao contrário do que aconteceu no
Estado Novo Varguista, o poder
repressivo não ficou nas mãos da polícia civil, mas dos
militares. A polícia civil
uniformizada deixou de existir, e as Polícias Militares,
então subordinadas ao Exército
através da Inspetoria Geral das Polícias Militares,
passaram a responder isoladamente pelo
policiamento preventivo e ostensivo (Mariano, 2002).
Foi uma decisão do regime militar engajar as PMs no combate
à guerrilha urbana
por serem mais confiáveis aos olhos dos detentores do poder
de então.5 Não foi à toa que os
Decreto no. 667, de 2 de julho de 1969,6 e no.
88.777, de 30 de setembro, regularam a
atuação das PMs inclusive integrando sistemicamente seus
serviços de informações (P-2)
ao do Exército, e o Regulamento Disciplinar das PMs e
Corpos de Bombeiros Militares
4 O caso emblemático é o paulista. As tradicionais Força Pública e
Guarda Civil deixaram de existir e boa
parte dos contingentes dessas instituições
foi transferida para a Polícia Militar. Em Pernambuco, o quadro
extinto da Guarda Civil foi
majoritariamente aproveitado no quadro permanente de policiais civis da SSP.
5 O caso emblemático é o paulista. As tradicionais Força Pública e a
Guarda Civil deixaram de existir e boa
parte de seus contingentes foram
transferidos para a Polícia Militar.
6 O artigo 3o. deste diploma diz caber às Polícias
Militares “executar com exclusividade, ressalvadas as
missões peculiares das Forças Armadas, o
policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades
competentes, afim de assegurar o
cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos
poderes constituídos”. Por este mesmo
decreto, foi criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM),
órgão vinculado ao então Ministério do
Exército, e responsável pelo controle das Polícias Militares.
46
passou a ser uma cópia do Regulamento Disciplinar do
Exército.7 Inclusive, os Policias
Militares passaram a ser regidos pelos novos Códigos Penal
Militar e de Processo Penal
Militar (Decretos-Lei no. 1.001 e 1.002, respectivamente)
editados em 21 de outubro de
1969.
A Constituição de 1988 ficou conhecida como “cidadã”. Tida
como a Constituição
de uma nova era democrática, na verdade, tornou
constitucional a linha mestra do aparato
policial criada pelo regime autoritário.Neste aspecto ela
foi uma Constituição “anti-cidadã”.
Portanto que fique claro: o regime militar, através das
PMs, aumentou a intervenção
castrense nos assuntos civis de segurança pública. A cisão
no sistema de segurança entre
Polícia Civil e Militar obedece à lógica da defesa do
Estado em vez da do cidadão.
Enquanto esta cisão não for desfeita, o sistema de
segurança pública não poderá funcionar
racionalmente. Há um consenso entre os operadores de
segurança pública, políticos e
acadêmicos de que o arranjo institucional no qual as
polícias estão inseridas além de ser
inoperante, aumenta o já baixo nível de acountabilidade
política do Estado brasileiro
A idéia de direito corresponde a uma prestação de serviços.
No caso uma ação
positiva do Estado especificamente, no direito à segurança.
Direitos podem ser
proclamados (“os direitos formais”), mas não efetivamente
colocados em práticas. O
descaso de nossa elite política com a segurança pública
pode ser comprovado
constitucionalmente. A Constituição Federal de 1988, § 7º
do Art. 144 estipula que “A lei
disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos
responsáveis pela segurança
pública, de maneira a garantir a eficiência de suas
atividades”. Até o presente, referida lei
7 As PMs ficaram, como ainda estão, atreladas aos planos de Defesa
Interna e Territorial do Exército. Em
casos de subversão da ordem ou de sua
irrupção, as PMs passam ao controle das Regiões Militares do Estado,
pouco importando a opinião do governador
que, não obstante, continuará pagando os salários dos Policiais
Militares.
47
não foi regulamentada. Com isto, as corporações policiais
ainda estão sujeitas às suas
legislações específicas, antigas e desatualizadas. E pior,
muitas vezes colidem com o texto
da Carta Magna.
Este arranjo institucional pluralista e descentralizado é
único no mundo
democrático.8
Não porque haja pluralidade de polícias,9 ou
porque as polícias sejam
controladas por vários governos10 em vez
de um só,11 ou porque a natureza das polícias
seja civil e militar. Afinal vários países, especialmente
os que adotam efetivamente o
princípio federativo, possuem várias polícias.
O problema reside no fato de nem a Polícia Militar nem a
Polícia Civil realizarem o
ciclo completo de polícia, ou seja, prevenir, patrulhar,
investigar e levar o culpado às barras
da Justiça. Ambas fazem, de fato, meio ciclo de polícia
cada uma. Se na matemática a soma
de duas metades resulta em um todo, tal não ocorre na
segurança pública.
A Polícia Militar chega ao local do crime e não pode
investigar. Limita-se, quando o
faz corretamente, a guardar a cena do crime e espera a
chegada dos investigadores. Neste
lapso muito deixa de ser apurado. Qualquer policial mediano
sabe que se os infratores não
forem identificados por pessoas no local da ocorrência,
diminui a probabilidade dos
policiais, posteriormente, os localizem. Por isso mesmo,
nos países democráticos, as
polícias são distribuídas geograficamente garantindo, deste
modo, que cada polícia faça o
ciclo completo de atividades. Quanto mais diverso for o
limite territorial, maior será o
numero de instituições policiais.
8 O conceito de arranjo institucional implica num conjunto de
instituições políticas, sociais e econômicas
que interagem numa dada sociedade. Em
termo de polícias, tal arranjo institucional refere-se, especialmente,
às instituições que interagem direta ou
indiretamente com elas, tais como: Judiciário, Ministério Público,
Sistema Penitenciário, Legislativo,
Executivo federal e/ou estadual.
9 EUA, Canadá, Inglaterra, Alemanha, Portugal, França, Bélgica,
Espanha, México, Argentina etc. também
possuem sistema policial pluralista.
10 Como é o caso dos EUA, Canadá, Alemanha, México e Argentina.
48
A Constituição de 1988 contribuiu para embaralhar ainda
mais as competências das
polícias. O artigo 144, § 4o, diz que a Polícia Civil
é dirigida por delegado de polícia de
carreira, incumbindo-lhe, pela ordem, as seguintes tarefas:
a função de polícia judiciária e a
apuração de infrações penais, exceto as militares. Como
interpretar essas competências?
Há uma imensa discussão na literatura sobre os conceitos de
Polícia Administrativa,
polícia de segurança e policia judiciária. Os conceitos não
são muito claros. A polícia
administrativa lato sensu é estranha à alçada
criminal. 12 Já a Polícia Administrativa
(preventiva) age mantendo a ordem e prevenindo a prática de
delitos. A polícia judiciária,
por sua vez, apura infrações penais nada tendo a ver, em
tese, com fatos administrativos.
A política de segurança pública deve ser vista como um
todo. Por isso mesmo, essa
esquematização é artificial. A Polícia Civil termina
fazendo tanto atividades de polícia
administrativa, de polícia repressiva como de polícia
judiciária mostrando a inutilidade da
rígida separação entre policiamento ostensivo e
investigação criminal.
A Polícia Judiciária tem por finalidade a investigação dos
crimes, fornecendo
elementos para a instrução do processo judicial. Não
obstante o nome Polícia Judiciária, ela
não exerce a atividade jurisdicional, atuando no inquérito
policial, que fornecerá ao
Ministério Público os elementos que lhe permitirão a
propositura da competente ação penal.
Mas, como lembra Cerqueira (1998), a exclusividade da
polícia judiciária não é da Polícia
Civil. Por exemplo, a Polícia Militar quando procede ao
atendimento de ocorrências
criminosas e preserva o lugar do crime inclusive
entrevistando vítimas e testemunhas, está
atuando como agente da polícia judiciária. Assim como a
Policia Civil realiza atividades de
11 Por exemplo, França, Itália, Espanha, Portugal, Chile, Bolívia,
Peru e Colômbia.
12 Por exemplo, a polícia sanitária, que não tem atribuições de
prevenir infrações penais (atribuição da polícia
de segurança), cuidando apenas das
infrações administrativas, e, muito menos, atribuições de polícia
judiciária.
49
polícia administrativa quando controla armas, identificação
das pessoas etc (Cerqueira,
1998).
A tentativa de separar as atividades de polícia
administrativa de polícia repressiva é,
enfatizo, inócua, e única no mundo. Por exemplo, a
dissolução de um comício, de uma
passeata, atos típicos de polícia administrativa tem lugar
apenas quando se revelam
perturbadores da ordem pública. Ou seja, o dano já foi
causado e a atuação administrativa
manifesta-se pela repressão a uma atitude anti-social
(Mello, 1994). Isto explica por que a
Polícia Militar e a Polícia Civil têm divisões
anti-sequestro. Cada uma reclamando para si a
competência de atuação, uma sob o argumento que quer
prevenir o seqüestro
administrativamente e outra repressivamente. No caso,
digamos, de um seqüestro de um
ônibus urbano com reféns quem é a autoridade competente
para negociar com o
seqüestrador? O delegado de polícia, pois o crime já
ocorreu, ou o coronel da PM que
participou desde o início da perseguição ao bandido?
Por sua vez, se um policial militar é informado que
determinada pessoa cometeu
um crime nos dias anteriores, de pronto não poderá efetuar
nenhuma providencia coercitiva.
Terá que comunicar o fato a Polícia Civil, pois apenas esta
intimará o suposto criminoso a
depor na Delegacia ou requererá um mandato de prisão ao
Juiz (Andrada, 2000:46).
No Brasil, a Polícia Militar patrulha, prende e entrega o
suposto bandido à Polícia
Civil que se encarrega de lavrar o auto de prisão,
estabelecer o inquérito e entregá-lo ao
Judiciário. Ou quando não há prisão em flagrante, faz a
investigação. Este arranjo
institucional gera rivalidades em vez de cooperação e onera
os cofres públicos. Cada
polícia, como já mencionado, possui seu grupo
anti-sequestro; dificilmente trocam
informações entre si, seus sistemas de rádios são
incompatíveis; os PMs acusam os
delegados de libertarem os presos depois de serem trazidos
às delegacias, e os delegados,
50
por sua vez, criticam os PMs por não saberem prender
legalmente justificando a liberação
dos mesmos etc.
Em algumas situações uma polícia cumpre o papel da outra
violando competência
constitucionais. A atividade investigativa é uma atividade
exclusiva da Polícia Civil. No
entanto, a Polícia Militar possui um amplo serviço de
investigações concorrendo com sua
congênere e provocando ressentimentos. O Serviço Reservado
da PM também se arvora no
direito de cumprir mandatos judiciais chegando a ponto de
levar presos aos quartéis,
embora o delegado seja a autoridade judiciária, conforme
denúncia do ex-presidente da
Associação de Delegados de Polícia do Estado de Pernambuco,
Ricardo Varjal (Soares,
1999b).
Esta situação é tolerada pelos Governadores de Estado
principalmente quando
envolve pessoas dotadas de influência política. Por
exemplo, o neto de um ex-governador
de Pernambuco foi covardemente assassinado em 1998, em
Olinda. Sob o argumento de
ineficiência da Polícia Civil na resolução do caso e ante o
clamor da mídia, a 2a. Seção do
1o. BPM invadiu a favela V-8, matando o verdadeiro autor dos
disparos e um suspeito.
Inquérito policial negou a suspeição levantada. O então
Delegado de Olinda fez críticas à
interferência da PM. É a ética dos resultados prevalecendo
sobre o Estado de Direito. Em
vez de melhorar a Polícia Civil opta-se por arranhar o
Estado de Direito ao permitir que a
PM faça o que constitucionalmente não deveria ser fazer.
O texto da Constituição Estadual de Pernambuco, ao dispor
sobre a segurança
pública, trouxe novidades. A primeira refere-se à titulação
dessa questão. Enquanto a
Constituição Federal simplesmente denomina de DA SEGURANÇA
PÚBLICA o Capítulo
III do Título V, a Constituição Estadual nomina o Capítulo
IV do Título IV de DO
51
SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA. Esse título sugere a
integração de múltiplos
componentes em um todo harmonioso.
A conotação de sistema a ser impressa à segurança pública
surgiu da observação de
que eram vários os órgãos de segurança publica. Contudo,
eles atuavam disfuncionalmente,
sem unidade lógica, com objetivos próprios, sem troca de
informações e de idéias entre si.
Não havia o mínimo de correlação e coordenação na atuação
desses órgãos, existindo entre
eles graves conflitos operacionais, principalmente entre a
Polícia Militar e a Secretaria da
Segurança Pública.13 Era evidente a necessidade de
integração das ações dos órgãos de
segurança pública, as quais deveriam ser integradas e
coordenadas de forma a constituírem
um conjunto harmonioso, que operasse eficientemente.
Isto só seria possível a partir de uma visão sistêmica do
modo como o Estado se
organizasse para atuar sobre a questão da segurança
pública. Assim, cada órgão policial e
de segurança seria parte de um mesmo sistema, que passaria
a coordenar as ações de cada
um, para fazê-los laborarem racionalmente, sem desperdícios
de energia e recursos
financeiros, materiais e pessoais, para um mesmo objetivo.
O objetivo, portanto, era fazer o
Constituinte impor aos governantes e operadores de polícia,
o raciocínio e a visão sistêmica
sobre a questão da segurança pública.
13 Alguns desses órgãos atuavam com atribuições que não lhes são
inerentes ou naturais, como eram os casos
da Secretaria do Trabalho e da Ação
Social, que tinha a custódia dos menores infratores, e Casa Militar,
detentora do comando da Defesa Civil do
Estado, atividade própria do, à época, Batalhão de Corpo de
Bombeiros Militares. Os outros órgãos que
tinham atribuições naturais na área da segurança pública eram: a
Secretaria da Segurança Pública, que
exercia as funções de polícia judiciária, polícia administrativa e, em
certa medida, de polícia de segurança; a
Polícia Militar, com o exercício do policiamento ostensivo e, por fim,
a Secretaria de Justiça, com a
responsabilidade de administrar o Sistema Penitenciário do Estado. Esta
secretaria, que adquiriu o nome de
Justiça, pelo fato de, no passado, ter sido a interface gerencial das
categorias profissionais públicas do
Direito com o Poder Executivo, quando este nomeava, promovia e
removia juízes, desembargadores,
promotores e procuradores de justiça, está carecendo de um estudo para
definir sua missão precípua e adotar uma
nomenclatura consentânea com sua real missão que, hoje, nada tem
a ver com aquele tipo de relação com a
Magistratura e o Ministério Público.
52
Os constituintes de quase todos os Estados adotaram
servilmente, como conceito de
segurança pública, a redação do caput artigo 144 da
Constituição Federal. Na Constituição
Estadual de Pernambuco, a mesma matéria é tratada no artigo
101, em cuja definição,
entretanto, houve um acréscimo, que implica numa
conceituação e visão significativamente
diferente da segurança pública oferecida pelo estado.
Comparemos os textos de ambas:
Constituição Federal Constituição Estadual
“Art. 144.
A segurança pública, dever
do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para a
preservação da ordem publica e da
incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes
órgãos: ....” (seguem-se os nomes dos
órgãos).
...............................
§7º. Lei disciplinará a organização e o
funcionamento dos órgãos
responsáveis pela segurança pública,
de maneira a garantir a eficiência de
suas atividades.
“Art. 101 – A Segurança Pública, dever
do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para
preservação da ordem pública, da
incolumidade das pessoas e do
patrimônio e asseguramento da
liberdade e das garantias individuais,
através dos seguintes órgãos
permanentes:
I- Polícia Civil;
II- Polícia Militar;
III- Corpo de Bombeiros
Militar.
§1º. As atividades de Segurança
Pública serão organizadas em
sistema,na forma da lei.
53
Ao tempo da existência da SSP, nunca foi criado órgão com o
nome Polícia Civil,
pelo que, quando se falava em polícia civil referia-se, na
realidade, a uma atividade e não a
um órgão formalmente constituído por lei, como é o caso,
por exemplo, da Polícia Militar
ou o Corpo de Bombeiros Militar. Ao ser criada em 1931, a SSP subordinava a
Polícia
Militar e realizava atividades de polícia civil. Quando a
PM foi desmembrada da SSP e
passou a constituir-se órgão autônomo do mesmo nível
hierárquico de uma secretaria de
Estado, a SSP teve a sua competência reduzida à de polícia
judiciária ou, como queira
chamar, de polícia civil.
Extinta a SSP e surgida a Secretaria de Defesa Social
(SDS), criada pela Lei
Estadual nº 11.629, de 28 de janeiro de 1999, a PM teve o seu status
rebaixado e passou a
integrar a SDS com o nível de uma diretoria de secretaria
de estado. O mesmo aconteceu
com o Corpo de Bombeiros Militar.
No que se refere à Polícia Civil, ainda falta ser editada
uma Lei Complementar (e
não lei ordinária), que disponha sobre a sua criação,
estrutura organizacional básica e
estatuto de seus servidores. É o Art. 18 da Constituição
Estadual que determina que essa lei
de criação e organização da Polícia Civil seja de natureza
Complementar. Como ela nunca
foi editada, não pode ser dito que exista, formal e
legalmente instituído em Pernambuco,
órgão permanente do sistema de segurança pública chamada
Polícia Civil.
Na ausência de Lei Orgânica da Polícia Civil, o policial se
vê na contingência de se
basear no Código de Processo Penal (CPP). Usa do artifício
da analogia. Isto permite
interpretações as mais subjetivas possíveis, trazendo
insegurança para o trabalho do
policial. É que o juiz, por exemplo, pode negar ou aceitar
tal trabalho baseado em
interpretação distinta do CPP.
54
O Governador Jarbas Vasconcelos optou por editar uma lei
ordinária, para criar a
Secretaria de Defesa Social à qual foram integralizadas as
atribuições de polícia judiciária e
colocada para gerenciá-las um Chefe de Polícia Civil com
status de diretor de diretoria de
secretaria de Estado. Portanto, a Lei de Organização do
Sistema de Segurança Pública
Estadual ainda não foi editada, em que pese a Constituição
Estadual determiná-la. Nestes
aspectos, a Constituição Estadual não foi ainda cumprida.
Está configurado o vácuo
normativo institucional na área da segurança pública.
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