sexta-feira, 3 de agosto de 2012

POLICIA CIVIL DE PERNAMBUCO - O DESAFIO DA REFORMA - CAPÍTULO IV AO VI


Tive a oportunidade de ler este livro todo e gostei, acho que o que está escrito retrata bem a situação da Policia Judiciária do Brasil como um todo. Usei até alguns textos selecionados deste livro em um Hábeas Corpus que solicitei a um Juiz de Cubatão para impedir que eu fosse indiciado injustamente por um crime que fui acusado por um superior. Não tive êxito no hábeas corpus, mas ao final do processo fui absolvido por INEXISTÊNCIA DE CRIME, e o chefe de polícia (delegado) que me acusou, foi humilhado na sentença, e menos de um ano depois, ele foi demitido da Polícia. Este livro fez parte de uma história da minha vida. Parabéns Jorge Zaverucha! Neste livro esta revelado várias faceta do poder de polícia que não constam nos manuais nem nos códigos de leis, nem nos regimentos internos.(Escriba Valdemir Mota de Menezes)
 



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CAPÍTULO IV
Polícia e Política Eleitoral
Não se faz polícia, se faz política--
ex-secretário de Segurança
Pública , Augusto Costa
Vimos que uma das principais razões exógenas que contribui para o mau
funcionamento da Polícia Civil foi a cisão do sistema de segurança pública realizado pelo
regime militar e mantido pela Constituição Federal de 1988. A partir de agora também
vamos analisar fatores endógenos que contribuem para a ineficiência e, conseqüente,
descrédito da Polícia Civil.
Um dos problemas que atinge o aparato policial reside no fato da Polícia ser parte
de Executivo com amplos poderes.1 Como lembra Lemos-Nelson (2000), o Executivo
sujeito a acountabilidade vertical do voto depende da aprovação popular para se eleger.
Conseqüentemente, tende a encobrir os defeitos do sistema policial que está sob seu
controle.E, simultaneamente, favorecer que partidários seus ocupem posições de poder no
aparelho de segurança pública.2 Seguindo Goodin (1998) defino poder como a capacidade
de uma pessoa ou grupo controlar as ações e escolhas dos outros. Política seria o processo
de assegurar os resultados desejados através do controle das ações e escolhas dos outros.
1 No caso da Polícia Civil a situação parece contraditória. Se ela é auxiliar do Poder Judiciário, por que a
Policia Judiciária faz parte do Poder Executivo? Ela não deveria estar na organização do Poder Judiciário?
(Dallari, 1991).
2 O presidente do PFL de Pernambuco, deputado André de Paula, por exemplo, acomodou na Secretaria de
Defesa Social os candidatos de seu grupo derrotados nas eleições de 2000 para as prefeituras de Taquaritinga
(Jânio Arruda) e Flores (Marcone Santana).
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De acordo com a famosa frase de Schattscheider, “organização é a mobilização de
um viés”. Usando a linguagem neo-institucionalista os resultados políticos são produto das
instituições e das preferências dos atores. Instituições têm poderes distributivos e sua
configuração facilita ou dificulta a obtenção de certos resultados. Do mesmo modo, o
controle de determinadas posições dentre dessas instituições confere a determinados atores
a capacidade de trabalhar com mais facilidade a sua visão de mundo às custas, obviamente,
dos que não conseguem ter acesso a tais recursos institucionalizados de poder.
O controle da Polícia Civil pelos interesses políticos partidários vem de longa data.
O ex-chefe de Polícia, Etelvino Lins, chegou a ser governador de Estado. O delegado e
tabelião João Roma como o ex-diretor de Polícia Civil no Estado Novo, Fábio Corrêa,
também foram difusores desta lucrativa relação. Todos eles ligados aos setores
conservadores da política pernambucana. Um dos mais recentes líderes desta prática foi o
ex-deputado Osvaldo Rabelo (PFL). Rabelo foi inspetor de áreas de conflito no estado e
conseguiu sete mandatos e suplência de cargos na Assembléia Legislativa de Pernambuco.
Rabelo construiu uma sólida base eleitoral cujos benefícios foram usufruídos pelo
seus filhos. Carlos Rabelo elegeu-se deputado estadual e Oswaldo Rabelo Filho tornou-se
prefeito de Goiana (Bessa, 1998). Até a data da pesquisa, 1998, os quadros de segundo
escalão na Polícia Civil possuem vínculos com o PFL (Partido da Frente Liberal). Isto
contribuiu para que os agentes policiais se organizassem também em bases partidárias. O
Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (Sinpol) é dominado politicamente pelo
Partido dos Trabalhadores.
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O então governador Marco Maciel, em 1982, nomeou sem concurso 45 delegados.
São por isso conhecidos como “delegados biônicos”.3 As indicações para as 16 delegacias
especializadas, 16 delegacias distritais e as 22 delegacias da Região Metropolitana do
Recife passam pelo critério político (Bessa, 1999). As nomeações baseadas no critério
político chegaram a ponto de existirem em janeiro de 1999, 55 delegados especiais. Eram
necessários apenas 30. Pelo regulamento da categoria, tais delegados têm de ocupar cargos
de chefia nas delegacias especializadas ou nas da capital. Isto prejudica as atividades nas
delegacias distritais e no interior do Estado.
Diante de tal situação, o então Chefe da Polícia Civil, delegado Manoel Carneiro,
enviou, no dia 5 de janeiro de 2001, à Assembléia Legislativa, projeto de lei propondo a
extinção de 25 vagas de delegados dos quadros da antiga Secretaria de Segurança Pública.
Carneiro também sugeriu mudança nos critérios de promoção para delegados especiais, ou
seja, passem a ser baseados na antiguidade e merecimento profissional.4
Rapidamente percebeu-se que as delegacias eram fontes de poder. Algumas se
transformam em comitês de campanha, em especial no interior do estado. Na Região
Metropolitana, as delegacias responsáveis pela proteção do patrimônio (Roubos e Furtos) e
as que estão localizadas em regiões densamente povoadas (Vasco da Gama e Água Fria)
são extremamente disputadas. Nas cidades do interior e nos bairros da periferia, o delegado
é considerado autoridade máxima. É para a delegacia que convergem grande parte dos
problemas da população: de crimes até as brigas de casais (Oliveira, 1984).
O jogo político-eleitoral, deste modo, perpetua o clientelismo. Os serviços policiais
são controlados pelo patrão (delegado ou agente) e são oferecidos aos clientes em troca de
3 Um deles viria a ser Secretário de Segurança Pública em um governo de esquerda.
4 “Polícia quer reduzir vagas de delegado especial”, Jornal do Commercio, 6 de janeiro de 1999.
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apoio eleitoral. Trata-se de uma forma particularista e assimétrica de relacionamento, pois
trabalha com a necessidade e não os direitos da clientela. Ao contrário do conceito de
cidadania que prevê um critério universalista de acesso aos recursos estatais baseado na
igualdade perante a lei (Graham, 1997).
O vereador do Recife e delegado José Antonio (PPB), concilia o expediente da
Câmara com o da Delegacia de Santo Amaro dando plantões noturnos. Sem deixar de lado
a sua principal base eleitoral, Casa Amarela, onde foi delegado por vários anos. Ele acusou
o ex-secretário de Segurança Pública, Antonio Moraes, ligado a Miguel Arraes, de ter lhe
perseguido politicamente durante a última eleição municipal, transferindo-lhe da delegacia
de Casa Amarela para Santo Amaro.5 Moraes era, então, membro de outro partido político
(PSB) tendo se afastado da SSP para disputar as eleições à Assembléia Legislativa.
José Antonio conseguiu ser reconduzido a direção da Delegacia de Casa Amarela.
Mas, antes das eleições municipais de 2000, o diretor da Polícia Civil, Manoel Carneiro,
quase toda semana teve de apagar as labaredas provocadas pelo mesmo delegado José
Antonio, e o delegado Ednaldo Araújo da Silva, da Delegacia de Vasco da Gama. Mais
uma vez por motivo eleitoral: primeiro é vereador e segundo ia disputar uma vaga na
Câmara do Recife Os dois disputavam o mesmo espaço eleitoral.
José Antonio recebia vencimentos de R$ 4 mil como delegado e R$ 4,5 como
vereador.6 Ele não é o único. Até 2000, a maioria dos delegados que eram vereadores do
Recife preferiu acumular a função de policial com a de parlamentar. Dos seis vereadoresdelegados
que integram a bancada da ‘segurança pública’, só João Arraes, ligado a Carlos
5 “Denúncia de uso da máquina”, Diário de Pernambuco, 18 de março de 1998.
6 A desorganização do Estado brasileiro permite que um delegado acumule seus vencimentos com o de
vereador, mas não com o de deputado estadual. Isto decorre de uma época em que o cargo de vereador não era
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Wilson e Miguel Arraes, está aposentado. O então presidente da Câmara, Fred Oliveira
(PMDB), ligado a Marco Maciel, estava à disposição da Diretoria de Polícia Judiciária.
Murilo Mendonça (PMDB), ligado a Jarbas Vasconcelos, também foi lotado no mesmo
departamento. Por sua vez, Marcos Menezes (PMDB) é delegado de plantão de Prazeres;
Cleurinaldo Lima (PSC) delegado de plantão de Olinda. Deste modo, os delegados não
ficam longe de suas bases eleitorais.
O que vale para os delegados também vale para o comissário Eriberto Medeiros
(PSD). Policial civil há 14 anos recém eleito vereador de Recife. Ele está lotado na
delegacia de plantão do Cordeiro. Assim explicou sua decisão de não abrir mão de seu
emprego como policial: “Não posso deixar minha atividade até porque aqui é o meu
principal reduto” (Borges, 2001).
Tamanho poder político não é transferido para a instituição. Os policiais eleitos
atribuem o sucesso eleitoral às suas qualidades pessoais e ao seu esforço. Acham que nada
devem a instituição. Por isso mesmo, os delegados-vereadores e delegados-deputados não
atuam em forma articulada, pois a principal preocupação é com a carreira política de cada
um. Defendem os interesses de sua categoria, da profissão, e da instituição, nesta ordem. A
Polícia Civil é um trampolim para a conquista do voto. Por isso, o termo ‘bancada de
segurança’ não deve ser levado ao pé da letra: os interesses de policiais não devem ser
confundidos com os interesses da Polícia. Como o fez o ex-presidente de ADEPPE, Gileno
Siqueira. Ele interpretou os 13.517 votos concedidos aos delegados, nas eleições de 1998,
como um reflexo da confiança dos pernambucanos na Polícia Civil.7
remunerado. Hoje é, mas o estado perdulariamente não atualiza a lei que impediria o acúmulo de
vencimentos.
7 Jornal da ADEPPE, outubro de 1998.
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A política partidária atinge a tal ponto a Polícia Civil, que nas eleições municipais
de 2000 quase 10% dos delegados se licenciaram para disputar a campanha municipal em
todo o estado. Em números isto significa que de 384 delegados, 32 se afastaram de suas
funções numa instituição que se queixa da escassez de material humano. Isto obrigou o
diretor da Polícia Civil a fazer remanejamentos subóptimos para não comprometer ainda
mais o policiamento. Segundo Carneiro, “trouxemos os delegados mais antigos que
estavam no interior para a capital, e os novos (recém-formados), que eram delegados
adjuntos em distritais e especializadas, foram para o interior. Muitos estão acumulando
funções” (Borges, 2000).
Foram candidatos os delegados:
José Custódio da Silva (Jaboatão dos Guararapes);
Francisco de Assis Pereira Freire (Trindade);
José Carlos Torres Rabelo (Caruaru);
Cleurinaldo de Lima (Recife);
Luiz Augusto da Silva (Igarassu);
Murilo Vitoriano de Mendonça (Recife);
José Ramos da Cunha Pedrosa (Gravatá);
Marcos Antonio de Souza Menezes (Recife);
José Antonio da Silva (Recife);
Marivan Bezerra Lola (Caruaru);
Amaro Almarez de Arruda (Taguaritinga do Norte);
Ednaldo de Araujo da Silva (Recife);
Luiz Henrique Cruz Ferreira (Paulista);
Washington Luiz Alves (Recife);
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Fred Oliveira (Recife);
Waldeniston Cavalcanti de Moraes (Paulista);
Miguel Florencio do Nascimento (Carpina);
José Gervásio da Silva (Cortês);
Alberes Felix de Souza (Cortês);
Paulo Roberto Viana Lapenda (Cortês);
David Medeiros Ferreira de Farias (Camaragibe);
Carlos Gilberto Freire de Oliveira (Olinda);
Raimundo Pedro da Silva (São Lourenço da Mata);
Antonio Bernardino da Silva (Barra de Guabiraba);
João Veiga Filho (Camaragibe);
Ocidir Pontes Vale (Recife);
Manoel Pereira da Costa Neco (Jaboatão);
Sergio Cantinho Salsa (Buenos Aires);
Antonio José da Silva (Olinda);
Almir Antonio Cesário Mota (Recife);
Edenizio Lourenço da Silva (Nazaré da Mata);
José Barbosa da Silva (Saloá).8
A mistura entre política partidária e polícia não é salutar nem para a Câmara de
Vereadores e/ou Assembléia Legislativa nem para a instituição policial. Peguemos o caso,
do uso irregular, por parte da Polícia Civil, de veículos pertencentes a seguradoras. No dia
8 Fonte: Secretaria de Defesa Social.
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26 de agosto de 1998, o então Secretario da Segurança Pública, João Arraes, denunciou o
uso irregular de mais de cem veículos particulares, roubados no Grande Recife.9
A alegação dos policiais era de que na falta de veículos oficiais para fazer
investigação, usavam veículos recuperados que pertenciam a seguradoras para recapturar
outros veículos furtados pertencentes às seguradoras. Suspeita-se em troca de propina, em
alguns casos, repartida entre delegados e agentes. Como não há documento formal que
ateste o comodato ou empréstimo, fica difícil se tomar medida judicial contra os policiais e
as seguradoras.10 Como de fato, ninguém foi punido até porque era de conhecimento da
cúpula da instituição.
O Código de Ética dos Delegados de Polícia estipula em seus artigos 8o. e 16o,
respectivamente, que “a profissão do Delegado de Polícia não será exercida contra a ordem
jurídica, nem com parcialidade, nem com objetivos de vantagem ou lucro, finalidade
política ou religiosa” e sua atividade “não pode implicar em conivência com o erro
manifesto, com a ruptura da norma jurídica ou a quebra dos princípios e deveres éticoprofissionais”.
João Arraes em vez de ser elogiado por querer coibir uma prática ilegal foi
severamente criticado dentro da Polícia Civil. Sua atitude foi interpretada como sendo
eleitoreira em alusão a rumores de sua futura candidatura eleitoral. Estaria com isto,
segundo seus críticos, querendo angariar simpatia, ou seja, votos, ante a sociedade.
Ante forte pressão intestina, Arraes tratou de por panos quentes no caso como se
pode notar no seu depoimento prestado a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). O
imbróglio reavivou a tradicional rivalidade entre delegados e agentes policiais. O então
presidente do Sinpol, Sergio Leite, afirmou que o sindicato já denunciara o uso de veículos
9 Não é raro encontrar em delegacias o uso de objetos roubados aprendidos (rádio, gravador, lustre etc) que
não foram reclamados por suas vítimas. Esta prática informal é ilegal.
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roubados várias vezes, mas a acusação, segundo o mesmo, era abafada pela Secretaria de
Segurança Pública. . “Muitas viaturas serviam para levar mulheres e filhos de diretores e
delegados para escola ou salão de beleza. Agora, dizer que os agentes faziam o mesmo com
suas famílias é mentira. Eles obedeciam a ordens e mesmo que levassem o carro para casa,
faziam com autorização superior”, disse Henrique Leite, então vice-presidente do Sinpol. 11
Ele ameaçou acionar o departamento jurídico do sindicato caso a SSP resolvesse punir os
agentes pelo uso irregular dos veículos.
A Assembléia Legislativa instaurou uma CPI, no dia 9 de setembro de 1998, com o
objetivo de investigar o escândalo. Nada de concreto foi acrescentado às denúncias já
feitas, e o no dia 30 de outubro, o deputado-relator da CPI, Carlos Lapa, pediu
arquivamento do inquérito parlamentar. Sozinho, ele concluiu, numa lógica bizarra, que o
uso de veículos roubados não constitui crime, por haver consentimento das seguradoras.12
Seu pedido foi aceito. O Ministério Público Estadual não protestou contra o arquivamento.
Um novo escândalo envolvendo carro roubado voltou a abalar a SSP. Um Monza
Classic de cor cinza com placa fria, roubado em abril de 1997 na cidade de Caruaru, através
de assalto a mão armada foi encontrado em poder do então delegado de Correntes. Segundo
o delegado, “eu não comuniquei nada a DRFV porque ia trazer o veículo para Recife na
sexta-feira, e encaminhá-lo a delegacia na segunda-feira. Mas, quando cheguei em casa
com o carro encontrei um policial da Corregedoria me esperando" (Soares, 1998). O
delegado garantiu ter em seu poder o auto de apreensão do veículo e que o tinha
10 “SSP vai investigar autorização para a utilização dos veículos”, Jornal do Commercio, 28 agosto de 1997.
11 “Sinpol ameaça mover ação contra SSP”, Jornal do Commercio, 28 de agosto de 1997.
12 Antes, em 29 de agosto de 1998, a SSP divulgou o número de carros roubados usados pela instituição: 112.
Sendo que 66 tiveram seus proprietários identificados e os outros 46 estavam com chassis adulterados.
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apresentado ao policial. O então corregedor da Polícia Civil, por sua vez, assegurou que tal
documento não foi apresentado (Ibid).
O referido delegado foi afastado de suas funções por João Arraes. Com a saída de
Arraes para disputar a vereança do Recife, o novo Secretário de Segurança, Carlos Correia,
mudou o delegado encarregado de investigar o caso, Djalma Raposo, conhecido por sua
severidade. Não apenas isto. Correia que assumiu numa quinta-feira, já na segunda feira
subseqüente anunciou que o então delegado de Correntes iria chefiar a delegacia de
Catende.13
Correia, que também tinha ambição político-eleitoral, justificou as nomeações como
sendo uma questão de necessidade: “temos 96 municípios sem delegados no interior. Se eu
não colocasse os dois para trabalhar, teríamos mais duas delegacias desfalcadas e a
população destas localidades seria penalizada” (Machado, 1998).
Um outro canal incentivador da promiscuidade entre a política partidária e a atuação
da polícia decorre da falta de condições para o funcionamento de determinadas delegacias
no interior do estado. Diante da falta de verbas para seu funcionamento, tais delegacias
terminam sendo mantidas pelas prefeituras locais. Quando não são as delegacias, são os
delegados, principalmente os novatos, que dependem dos prefeitos. Recebendo baixa
remuneração, alguns destes delegados aceitam ajuda de custo de prefeitos. Isto,
obviamente, cria um vínculo de dependência da delegacia e dos delegados com os prefeitos.
Em especial nos períodos que antecedem as eleições.
Muitos dos novos delegados, em sua chegada a cidade são recebidos por certos
políticos com o aviso de que a autoridade policial anterior foi transferida a seu pedido. No
13 Neste mesmo dia, Correia também anunciou que um delegado, suspeito de facilitar a fuga da quadrilha que
assaltou o Banco do Brasil em Petrolandia, passaria a chefiar a delegacia de Parnamirim.
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caso de delegado não se intimidar e decidir contrariar determinado interesse do prefeito, ou
de outro político que tenha força política junto ao governador, o delegado termina sendo
transferido de delegacia e, muitas vezes, vai para a “geladeira”, ou seja, sem função
definida. Trata-se de um aviso aos delegados que teimem em querer aplicar a lei em vez de
respeitar os acordos políticos estabelecidos entre as autoridades locais e o Palácio do
Governo do Estado. Nem a Polícia Civil nem a Associação de Delegados são capazes de se
posicionarem em veemente defesa de seus quadros, pois almejam as benesses do
governador de plantão.
Esta situação é reconhecida internamente pela cúpula da Polícia Civil, que, no
máximo, consegue remediar a situação de desrespeito com a agente da lei por parte do
próprio governador do Estado. A delegada Rita de Cássia Valença F. de Castro, iniciante na
carreira, comunicou verbalmente a diretora da Polícia Civil, sobre a dificuldade que estava
encontrando para investigar o prefeito da cidade de Sirinhaém, supostamente envolvido em
crime. A diretora pediu à delegada que lhe comunicasse por escrito o ocorrido para que
pudesse designar um delegado especial para investigar o caso. Caso contrário, a jovem
delegada terminaria sendo transferida.14
Noutros casos, prevalece a crua ingerência político-partidária na Polícia Civil.
Como se verá nos casos relatados abaixo. Os nomes dos delegados envolvidos serão
suprimidos, devido aos mesmos temerem sofrer algum tipo de represália.
1) A delegada de polícia da cidade de Pesqueira, proibiu que o enteado do prefeito, que era
vereador e servidor público do Instituto de Identificação Tavares Buril lotado na delegacia,
14 Entrevista de Rita de Cássia Valença F. de Castro com Jorge Zaverucha. Recife, 23 de julho de 2001.
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continuasse cobrando pela primeira via de carteira de identidade. Em razão disto, passou a
ser ameaçada de ser transferida da cidade.
Neste mesmo ano de 2.000, o delegado de Carnaubera da Penha, ao passar por
Pesqueira, surpreendeu o segurança particular do candidato a prefeito portando ilegalmente
uma espingarda. A delegada de Pesqueira lavrou o auto respectivo.
Após várias ameaças de transferência, esta, de fato, aconteceu no momento em que
houve um empate técnico entre o candidato do governador e o candidato da oposição.
Curiosamente, a delegada soube de sua transferência através da imprensa.
Manifestações documentais foram feitas pela sociedade pesqueirense. O Lions
Clube, a Maçonaria, a Ação de Cruzada Social Feminina, o Conselho Municipal da
Criança, o Clube de Diretores Lojista, a imprensa local, o Ministério Público e a
Magistratura ficaram a favor da permanência da delegada. Em vão.
Em virtude de não existir delegado respondendo pela cidade e, diante do novo
pedido feito pela população em prol da volta da delegada, a chefe de Polícia expediu
portaria lotando, novamente, a delegada em Pesqueira. Contudo, após a citada portaria ser
assinada e apresentada ao departamento de registro, a mesma foi, posteriormente, recolhida.
A mencionada delegada ao tomar conhecimento do recolhimento da portaria,
procurou a chefia a fim de saber o que havia ocorrido. Recebeu a informação que o
deputado majoritário da cidade havia interferido. Alegou ser a delegada muito legalista e,
desse modo, iria prejudicar sua campanha eleitoral.
2) Às vésperas da eleição de 2.000, na cidade de Bonito, o delegado da Polícia Civil
apreendeu cestas básicas que estavam sendo distribuídas pelo cabo eleitoral da então
prefeita.
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Em um comício eleitoral, a mencionada prefeita subiu no palanque e chamou o
delegado de “safado”. Afirmou que o diretor do policiamento do interior era seu amigo
pessoal e que havia conseguido a promessa de transferir o referido delegado. De fato, dias
depois o delegado foi transferido para a cidade de Pesqueira. Embora, nem o delegado
tivesse pedido para sair. O delegado entrou com um processo judicial contra a prefeita por
crime contra a honra. A sentença foi condenatória, mas o delegado continuou fora de
Bonito.
3) Novamente, ás vésperas da eleição o delegado de Santa Cruz do Capibaribe foi
transferido por impedir, propaganda eleitoral indevida. Ela estava sendo feita por carro de
som em frente à delegacia.
4) A delegada de polícia de Jaqueira, foi transferida, no ano de 2.000, por não atender a
pedidos políticos. Os pedidos mais comuns feitos por políticos são: soltar o preso; não fazer
o flagrante; liberar veículos apreendidos; interceder em favor de algum queixoso ou
reclamado em delitos de pequeno potencial ofensivo. Os pedidos mais graves são:
manipular os autos do inquérito policial extraviando provas e/ou declarações de
testemunhas; não indiciar o acusado. Estes pedidos ou são solicitados diretamente ao
delegado ou vem por via superior. O termo utilizado em pedidos pela própria administração
é o seguinte: “administre isso”.
5) Agente de polícia de um município pertencente à regional de Caruaru foi transferido do
local para outra área por responder a processo disciplinar instaurado por denúncia de
corrupção. Meses depois, o referido policial retornou para o mesmo lugar mercê de pedido
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político: o referido agente é parente de um deputado local. O processo de apuração da
conduta do policial se encontra parado na Corregedoria Única que foi criada com o objetivo
de dar cabo ao corporativismo das Corregedorias da Polícia Civil e Militar...
6) Em 1994, ocorreu um homicídio no distrito (hoje município) de Xexéu envolvendo um
deputado estadual. Havia informações que o mesmo havia encomendado o crime. Diante da
disposição dos delegados das cidades de Água Preta, Palmares, Joaquim Nabuco e Catende
de investigarem o ocorrido, todos foram transferidos.
7) Na cidade de Gameleira, em 1992, o prefeito da época afirmou que se o delegado
consentisse a realização de um comício na Praça do Mercado, ele seria transferido. Dito e
feito.
A força do clientelismo político sobre a polícia coloca em xeque a existência da
Polícia Civil como agente do Estado de Direito. Neste ambiente, continua a prevalecer a
máxima atribuída a Getúlio Vargas: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Durante as
eleições para a Prefeitura do Recife, em 2002, o então prefeito Roberto Magalhães cometeu
um ato incompatível com seu cargo. Irritado com comentários feito por determinado
jornalista contra a atuação de sua esposa, Magalhães entrou na redação do Jornal do
Commercio armado e intimidou o jornalista. Além deste abuso de autoridade, o porte de
sua arma estava vencido. Nenhuma autoridade policial tomou qualquer providência para
enquadrar o prefeito no Código Penal.
A política eleitoral mina a atuação legal da polícia, terminando por acirrar os
ânimos internos da instituição. Os policiais são, regularmente, identificados pela sua opção
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partidária em vez de sua competência profissional. Como os delegados estão no centro
desta articulação, os agentes de polícia trilham pelo mesmo caminho. Ou seja, procuraram
ajuda de partidos políticos para fazer avançar os interesses de sua categoria. Destaque para
o Sindicato de Policiais Civis do Estado de Pernambuco (Sinpol). Embora o título refira-se
a Polícia Civil, ele representa de fato a categoria dos agentes de polícia e encontra no
Partido dos Trabalhadores (PT) seu guarda-chuva político. De fato, seu primeiro presidente,
Sergio Leite, foi eleito vereador de Recife e, posteriormente, deputado estadual pela sigla
do PT. Cada grupo policial trabalha para a ascensão de seu grupo político-partidário
visando o avanço de seus interesses corporativos.
Atualmente, seu irmão, Henrique Leite, preside o Sinpol e estreou como novo
vereador petista da capital. Leite, tal como os delegados-vereadores, acumula as funções de
agente policial e vereador. Quando fez críticas às políticas de segurança do governos
Miguel Arraes e Jarbas Vasconcelos, mesmo que sejam justas, é imediatamente
desqualificado pelas autoridades sob a alegação de estar representando o PT e não a polícia.
Os ânimos entre o Sinpol e Vasconcelos estão ainda mais acirrados, pois o governador
definiu o PT como sendo seu principal rival na luta pela reeleição. Dito e feito. Assim que o
Sinpol anunciou uma greve da categoria para 3 de julho de 2001, imediatamente o
secretário de Governo de Vasconcelos, Dorany Sampaio, acusou a greve de ser uma ação
do PT.15
Delegados à parte, há outras correntes que não se identificam com o PT. Como pela
Constituição só se pode criar um sindicato por categoria, tais grupos criam as Associações
que funcionam como se fossem sindicatos paralelos. Afora a União dos Escrivães de
Pernambuco (UNEPPE), existe a Associação dos Dactiloscopistas Policiais de Pernambuco
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(ADAPOC); Associação Pernambucana de Medicina e Odontologia Legal (APEMOL);
Associação dos Peritos Criminais (APOC) e Associação dos Delegados de Polícia de
Pernambuco (ADEPPE.). A disputa pela liderança desta Associação pode atingir níveis
inimagináveis. Durante as eleições de 1999, o editor do jornal da ADEPPE, delegado
Tancredo Loyo denunciou que o grupo do candidato Ricardo Varjal havia tentado
“empastelar a última edição” do jornal. “Coisas dos porões dos idos de pós 64”, arrematou
(Scarpa, 1999).
A eleição para a presidência da ADEPPE, em 22 de março de 2001, mostrou a
animosidade entre os delegados. O delegado Antônio Cândido Filho candidato de oposição
a presidência, e filiado ao Partido dos Trabalhadores, distribuiu um folheto onde se lê:
“Hoje, quando vivemos o momento de sucessão na ADEPPE, esses mesmos grupos se
apresentam novamente, para continuar enganando a classe e se locupletando do órgão que
tem o dever de representar os interesses dos Delegados de Polícia”.
O folder da campanha do delegado Joaquim Donato, ligado ao deputado Inocêncio
de Oliveira, estocou dois de seus concorrentes dizendo que ele “não faz segurança privada,
trabalhando exclusivamente para a polícia”. Era uma referência a candidatura do exsecretário
de Segurança Pública, Augusto Costa, ligado ao ex-governador e deputado
Joaquim Francisco, que seria um dos proprietários da firma de segurança criada há seis
anos e com 3.500 seguranças. Pela lei do funcionalismo público é proibido ao policial civil
exercer atividades paralelas.16 Curioso que esta denúncia apareça durante campanha
15 “Governo diz que greve da Polícia Civil é ação do PT”, Jornal do Commercio, 2 de julho de 2001.
16 Costa era o diretor do Departamento de Proteção à Vida, setor responsável pela Delegacia de Homicídios e
pelo Núcleo de Crimes Múltiplos. “Atividade paralela fere leis e põe a ética em xeque”, Jornal do
Commercio, 8 de abril de 2001. A reportagem também cita um delegado que prestaria serviços a firma de
corretagem de seguros, empresa que atua com sistema de rastreamento de cargas roubadas. Em depoimento a
CPI do Narcotráfico, o delegado confirmou que recebia R$ 6 mil por mês da empresa mais bônus por carga
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política e ninguém, nem mesmo os denunciantes, tomem uma atitude para coibir manifesta
ilegalidade. A Corregedoria da SDS ficou de investigar as denúncias, mas até agora não
apresentou resultados, e o assunto foi esquecido.
Afora isto Donato acusou uma das chapas rival de contar com o apoio de quatro exsecretários
de segurança pública. “Na gestão de um deles, uma delegacia de plantão foi
invadida por PMs que retiraram à força um soldado e rasgaram o auto de flagrante de sua
prisão. O então presidente da ADEPPE e o antecessor protestaram veementemente e foram
punidos com injustas suspensões, anuladas depois pela Justiça. Na gestão do outro, o
Departamento de Operações foi extinto, e os móveis e equipamentos de comunicação de
rádio transferidos para a PM com sua assinatura. O então presidente da ADEPPE, que foi
injustamente punido juntamente com seu antecessor, foi também secretário da SSP, tendo
deixado o cargo por discordar do que o governo queria fazer à Polícia Civil”.
Os datiloscopistas também faze m, e deixam-se fazer, o jogo da competição eleitoral.
São freqüentes os chamados “mutirões da cidadania”. Disfarçado do nobre propósito de
incentivar a cidadania, são envidados caravanas de técnicos ao interior, coincidentemente
às vésperas das eleições. Tais caravanas chegam aos municípios que são dominados pela
coalizão política do Governador de plantão. O verdadeiro objetivo seria a troca dissimulada
de carteira de identidades por votos.
Algumas vezes na ânsia de se emitir o maior número possível de identidades,
os datiloscopistas retornam das viagens com formulários em branco para serem preenchidos
no IITB. Isto implica na ausência de pesquisa rigorosa e cadastramento com dados errados
valiosa recuperada. Por sua vez, um comissário que na trabalha no Grupo de Operações Especiais da Polícia
Civil, seria um dos donos da firma de segurança privada.
72
Portanto, tal “mutirão de anti-cidadania” jamais resultará no propósito original da missão,
muito pelo contrário facilitará e favorecerá a fraude.
Alguns datiloscopistas, em períodos eleitorais, também sabem usar seus
conhecimentos para avançar seus pleitos eleitorais. Vários deles, ou seus representantes,
têm trânsito livre para emitir identidades, inclusive isento de taxas. Existe no IITB um
Posto especial isento de taxas com fins especialmente políticos. Nas eleições de 2000, havia
candidatos datiloscopistas que chegaram a pintar muros, panfletos e veículos com o
codinome de “fulano-de-tal” da identidade.
A alta influência político-partidária na Polícia Civil motivou o deputado estadual
Israel Guerra a propor Emenda à Constituição Estadual (no. 26/2001), acrescentando
parágrafo ao artigo 103 da referida Carta. Pelo mesmo, seria garantida a prerrogativa da
inamovibilidade aos Delegados de Polícia de Carreira nos mesmos termos em que a
exercem os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. O mencionado deputado
assim justifica sua proposta: “....Fundamenta-se a nossa proposta na necessidade de
fortalecimento da autonomia dos delegados na sua função precípua, que é conduzir
investigações policiais sobre os mais variados tipos de delitos punidos no diploma penal
brasileiro e na legislação penal extravagante. Com a inamovibilidade, o Delegado fica a
salvo das injunções políticas, das pressões para proteger apadrinhados de lideranças
políticas, que, muitas vezes, utilizam-se de sua influência junto às instâncias superiores,
definem a transferência das citadas autoridades policiais, para lugares distantes da
circunscrição onde estavam incomodando.”
A preocupação do deputado é corroborada pelo delegado aposentado Jorge Tasso.
Segundo o mesmo, desde que os delegados passaram a comandar a Segurança Pública “eles
só fizeram política” e “nada fizeram pelos policiais” e “lá só tem grupos político, um
73
querendo comer o outro” (Scarpa, 2001). Tasso vai adiante, e diz existir três tipos de
delegados em Pernambuco: os aposentados, como ele, os da ativa, “meia dúzia” que
trabalha, e os inativos, “que passam o dia jogando bilhar na sede da Adeppe” (ibid).
Como se nota, a Polícia Civil é uma instituição bastante fragmentada. Afora as
rivalidades funcionais internas, a filiação partidária, e pressões políticas incrementam as
desavenças interna corporis, dificultando o estabelecimento de uma polícia eminentemente
profissional. Cada grupo fala por si, e quem fala pela Polícia Civil? As divisões chegaram a
um ponto que, talvez, o mais correto seja dizer que existem várias polícias dentro da Polícia
Civil.
74
CAPÍTULO V
Inquérito: ícone de poder da Polícia Judiciária
A desordem é a ordem que nos
convém—Goffredo Telles Júnior.
O sistema de justiça criminal brasileiro opera de acordo como o esquema abaixo:
1) A Polícia Militar toma conhecimento do crime e dá o primeiro atendimento à ocorrência
criminosa; 2) Ao receber a ocorrência da PM a Polícia Civil a registra; 3) Registrada a
ocorrência, a Polícia Civil, por sua iniciativa, dá inicio ao inquérito policial1; 4) Finalizado
o inquérito ele é remetido ao Ministério Público; 5) O Ministério Público pode pedir o
arquivamento do inquérito, novas diligências ou aceitar o inquérito como está e oferecer a
denúncia que é remetida à vara criminal; 6) Se o juiz criminal aceita a denúncia do
promotor inicia-se a instrução criminal. Como se nota, os procedimentos são realizados em
diferentes instâncias e passam por quatros fases: do policiamento ostensivo; da polícia
judiciária; da promotoria e fase judicial (Cerqueira, 1998).Sendo o réu condenado, entra em
cena o sistema penitenciário.
O sistema de aplicação de penas no Brasil apresenta faceta inusitada, denominado
de sistema híbrido ou misto. Fraciona-se a conduta do Estado em duas fases distintas:
administrativa e judicial. Costuma-se dizer que tal sistema tem início no momento em que
ocorre a denúncia da Promotoria de Justiça. Neste esboço, caberia à Justiça Criminal
instruir os processos e ao Ministério Público promover a ação penal. Na prática, todavia, a
1 Chama-se inquérito policial, porque é elaborado pela Polícia Judiciária visando apurar as infrações penais e
sua autoria. Foi criado em 1871 pela reforma judiciária do Império. Existem outros tipos de inquéritos:
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teoria é outra. A Polícia Judiciária Federal (Polícia Federal) e Estadual (Polícia Civil)
termina por fazer um pouco de cada coisa. Deste modo, o inquérito policial não é apenas
uma mera peça informativa de apuração da verdade do fato delituoso. Como o inquérito
policial é um procedimento administrativo da fase de persecução penal, poderá haver no
mesmo irregularidades, mas não nulidades que são próprias do processo (Moraes, 1991).
Como assim? Devido a estrutura do sistema de aplicação de pena no país, o
inquérito, via de regra, se transforma no único conjunto de provas de que se vale o
Ministério Público para o oferecimento da denúncia e, conseqüentemente, da promoção da
ação penal perante o Poder Judiciário. Na fase do inquérito são constituídas, sem o crivo do
contraditório2 e, via de regra, sem a presença do Ministério Público e do advogado de
defesa, provas que vêm a ganhar caráter definitivo, como aquelas destinadas a certificar a
existência material do crime.
Em razão dos prazos processuais exíguos e da posição passiva da promotoria e do
juiz, é o inquérito que norteia o direcionamento da instrução judicial.3 Na maioria das
vezes, a autoridade judicial limita-se ao papel de mera repetidora dos atos realizados
durante a fase inquisitória. Por isso mesmo, o desfecho é bastante previsível e a figura do
delegado, o responsável pelo inquérito, se transforma em verdadeira fonte de poder.
Começa com ele, embora indiretamente, o sistema de aplicação ou não da pena. É, hoje em
dia, uma forma sutil de transferir para a Polícia, mais especificamente os delegados, os
poderes de Justiça.
falimentares, militares, sanitários, legislativos, judiciais além de outros desenvolvidos pelas autoridades
administrativas conforme parágrafo único do artigo 4o. do Código de Processo Penal.
2 Como o inquérito policial é um processo administrativo e não instrução judiciária, não há que invocar o
princípio do contraditório, contido no artigo 5o, LV, da Constituição Federal.
3 Para Pitombo (1996), “… o juiz penal, em muito se dirige pelos meios de provas constantes do inquérito, ao
receber ou rejeitar a acusação; ao decretar a prisão preventiva ou conceder liberdade provisória; ao determinar
o arresto e o seqüestro e confisco de bens, por exemplo”.
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Forma explícita era a que existia antes da Constituição Federal de 1988. Vigorava
então a Lei No. 4.611, de 2 de abril de 1965, que prescrevia o rito sumário nos crimes de
homicídio culposo e lesão corporal culposa. O processo contravencional era, então, iniciado
por iniciativa da autoridade policial através de portaria ou auto de flagrante. Eram
verdadeiros processos penais instaurados nas Delegacias, onde a autoridade policial
assumia as funções de juiz. A autoridade policial, via portaria ou auto de prisão em
flagrante delito, funcionava até mesmo como órgão de acusação (Moraes, 1991).
Não resta dúvida que com a Constituição de 1988, o Delegado de Polícia perdeu
poderes. Mas continuou a ser o responsável por todos os rumos de um inquérito. Como não
há um rito estabelecido, quem define a ordem na coleta de provas é o próprio delegado.
Inexistindo regras, cabe ao delegado decidir se ouve os suspeitos antes das vítimas e
determinar a produção de provas sobre a autoria antes de pedir o exame de corpo de delito e
laudos periciais. Ou o inverso como sugere a boa prática policial.
Dotado desta alta margem discricionária, o delegado pode apressar ou retardar um
inquérito. Podemos citar um caso de repercussão nacional que foi o inquérito policial para
apurar os acontecimentos na Favela Naval. O delegado encarregado colocou os policiais
militares suspeitos, em clara vantagem num eventual processo judicial. O delegado poderia
ter aberto o inquérito, mas deixou para seus superiores a tarefa de instaurá-lo mediante uma
portaria. Com isto, os suspeitos ganharam tempo, pois a portaria foi se arrastando de
cartório em cartório até as mãos de outro delegado (Blat & Saraiva, 2000).
Este procedimento foi legal embora ilegítimo. Kant de Lima (1999) chama atenção
para a barganha oficiosa e/ou ilegal. Segundo ele,
“Tais procedimentos, sempre ameaçados de ilegalidade, são sempre analisados ou como distorções,
ou como desvios de comportamento, atribuídos a funcionários inescrupulosos. Entretanto, embora
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isto possa ser em alguns casos verdade, observei durante as pesquisas de campo certas regularidades
que apontam para a consistência de tais procedimentos com um verdadeiro sistema de produção de
verdade, de eficácia comprovada. Assim, a regulação da tortura de acordo com a gravidade da
denúncia ou queixa e conforme a posição social dos envolvidos; a permissão da participação dos
advogados nos inquéritos também de acordo com as diferentes posições que estes especialistas
ocupam nos quadros profissionais; o registro—ou não—das ocorrências levadas ao conhecimento
da polícia; a qualificação e tipificação—ou não—das infrações e crimes registrados e a abertura de
investigações preliminares, que levam, ou não, ao arquivamento ou prosseguimento do inquérito
policial; tudo isso de acordo com interesses manifestamente particularistas são, sem dúvida,
algumas dessas práticas institucionalizadas”.
Esta poderosa fonte de poder, sem o devido controle conferida aos Delegados,
favorece a corrupção ao conferir às autoridades policiais uma desmedida capacidade
monopolista de atingir uns cidadãos ou de favorecer outros.4 O cidadão se transforma em
refém de maus policiais que conhecem sua capacidade de infligir constrangimentos aos
suspeitos, vítimas e testemunhas. Afinal, embora o indiciamento não implique em juízo
definitivo de culpa, leva o cidadão a ter seu nome incluído em folha corrida. Mesmo que
seja posteriormente comprovada sua inocência, o estigma foi criado e demora a ser
superado, quando o é.
Embora a Polícia Judiciária não integre o Poder Judiciário, pois está subordinada ao
Poder Executivo, ela exerce, simultaneamente atividade investigatória, tipicamente policial,
e judicial. Segue um ritual similar na confecção dos inquéritos policiais ao exercido pelos
juízes no processo criminal. O Delegado de Polícia, por sua vez, age como se fosse um juiz
de instrução, a ponto de muitos acharem que o trabalho investigativo não é próprio de seu
4 A Delegacia de Roubos e Furtos de Veículos tem por costume só instaurar inquérito quando o objeto é
encontrado, em especial no caso de roubo de veículos. Costumeiramente, o delegado ao apreender um veículo
com chassis adulterado em vez de procurar saber se o carro foi roubado e quem é de direito seu dono, toma
uma atitude ilegal. Deixa o condutor do veículo como depositário infiel.
78
cargo, e sim de comissários e agentes de polícia.5 Desse modo, evitar participar de
diligências e operações de coleta de provas e prisões de criminosos.6
Filosoficamente, a ação policial é una, porque a Policia está dentro da esfera de
poderes do Executivo. Porém, como vimos, a ação policial iniciada na prevenção, acaba por
assumir contornos nitidamente judiciais. São atribuídas às autoridades de Polícia Judiciária
muitas funções que deveriam ser da exclusiva competência do Judiciário. Como no caso do
requerimento do ofendido para abertura de inquérito, cuja decisão é da competência da
autoridade de Polícia Judiciária, em grau de recurso,7 bem como no tocante aos processos
contravencionais, que se iniciando nas delegacias, dão forma judicial aos atos policiais.
Cumpre ressaltar que esta prática afronta o princípio da separação de poderes,8 pois quem
se encontra investido na função de um deles não poderá exercer a de outro, sob pena de
violar o principio de check and balances (freios e contrapesos), base da democracia liberal
ocidental.
O próprio Código de Processo Penal propaga esta dupla face da Polícia Civil. O
artigo 4o diz que a Polícia Judiciária será exercida pela autoridade policial no território de
suas respectivas jurisdições e terá por fim a apuração de infrações penais e da sua autoria.
A expressão jurisdição, todavia, significa a atividade de órgãos jurisdicionais. A Polícia
Judiciária é um órgão policial tanto é que não lhe cabe investigar fatos não tipificados pela
5 Tal distorsão resulta, creio, de interpretação deficiente do Regulamento Geral da Secretaria de Segurança
Pública (Decreto no. 3.167, de 05 de julho de 1974). O Art. 412 incumbe ao Delegado de Polícia: I- exercitar
em todo o Estado, em toda sua plenitude, a polícia judiciária; II- realizar investigações, diligências e outros
atos destinados à polícia preventiva; e III- exercer quando julgar necessário, as atribuições das demais classes
do Serviço de Polícia Judiciária. Este Regulamento, por sua vez, incumbe ao Agente de Polícia, em primeiro
lugar, a realização de investigação.
6 A grade do curso de formação de delegados de Polícia ministrado pela Academia de Polícia, a ser
apresentado no último capítulo, corrobora a conclusão dos autores.
7 CPP, art 5o., II, 2o., “Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para
o chefe de Polícia”.
8 Constituição Federal, artigo 6o.
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lei penal. Mais correto seria o termo circunscrição que vem a ser o espaço ou área onde a
autoridade policial tem atribuição para desenvolvimento de suas atividades. O legislador,
finalmente, através da Lei 9.43/95 incluiu o termo circunscrição no lugar de jurisdição.
Nesta mesma linha, Cerqueira (1998) afirma que “a polícia brasileira executa em
torno do inquérito policial um ritual semelhante ao exercido nas varas criminais para a
realização da instrução criminal. O delegado de polícia funciona como se fosse um juiz de
instrução e a delegacia como se fosse um cartório; costumo dizer que o escrivão acaba
sendo mais importante do que o detetive que deve proceder à investigação criminal.
Atribuo a esse quadro, típico do cenário brasileiro, o processo de burocratização e de
ineficácia da investigação criminal”.
A burocratização dos procedimentos formais da Polícia Judiciária, em especial o
inquérito policial é gritante. Muitos inquéritos se transformam em verdadeiros calhamaços
que poderiam ser reduzidos a algumas folhas de papel. Isto contribui para a demora do juiz
em contemplá-los favorecendo, por conseguinte, os prazos prescricionais. O curioso como
lembrou o juiz Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, é que a arquitetura legal do
Código de Processo Penal não é indutora desta burocratização enfadonha. Por isso mesmo,
ele indaga: “Quem burocratizou o inquérito? Quem burocratizou a interpretação e
fundamentalmente a aplicação do Código do Processo Penal, no que diz respeito ao
inquérito?” (Anais, 2001)
A burocracia do inquérito a aproxima dos procedimentos da instrução criminal, com
a desvantagem da ausência de promotores e advogados de defesa, incentivando a corrupção
policial. Isto se agrava na medida em que o desenho institucional das polícias civis permite
que elas funcionem como portas do judiciário. Portal, no sentido definido por Lemos-
Nelson (2000), ou seja, capacidade de selecionar os casos que serão encaminhados ao
80
Judiciário. Este processo de seleção permite ao delegado, em especial, manipular as
categorias de enquadramento dos acusados, selecionando e incluindo ou não evidências
cruciais para o resultado dos julgamentos. Haja poder.
Ante tal situação, abre-se um amplo espaço para a manipulação das provas e, por
conseguinte, do inquérito.9 Um modo de manipulação ocorre através da tortura de
suspeitos, prática ainda presente em algumas delegacias de Pernambuco, conforme o
recente relatório apresentado pelo relator especial da ONU, Nigel Rodley, comprovou
(Lourenço & Novelino, 2001).
Outro tipo ocorre através do Livro de Registro de Ocorrências Reservadas, usado
para registrar casos de repercussão na sociedade. O uso deste tipo de Livro de Registro foi
uma prática bastante utilizada durante o regime militar, ora para não expor ilustres figuras
da sociedade ou acobertar “achados mórbidos” que não interessavam ser divulgado. Caso
das ocorrências fossem registradas no Livro de Registro de Ocorrência “não reservado”, a
imprensa teria acesso imediato a informação.
Recentemente, no ano de 1992, veio a tona o que ficou conhecido como o caso
Sergei. Um jovem suspeito de roubo em Boa Viagem foi irregularmente levado a Delegacia
do Janga e espancado brutalmente. Terminou falecendo. Para encobrir a responsabilidade
do delegado e de agentes daquela delegacia, com a cumplicidade de um Procurador do
Estado foi feito um registro de ocorrência em um Livro de Registro de Ocorrência
Reservado. Ao ser descoberto, o delegado foi demitido, mas não foi a julgamento e nada
aconteceu com o referido Procurador.
9 Segundo o Presidente da Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis, José Milton de Oliveira,
a conclusão de um inquérito é, na média, demorada. “Quando chega na Justiça, muitos policiais chamados a
depor não se lembram com clareza do crime”. “Inquéritos lentos na delegacia”, Correio Braziliense, 3 de
julho de 1998.
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Esta atitude é ilegal pois Instrução Normativa (IN) 02/87 proibiu terminantemente a
utilização de livro de registro reservado. Afinal, diante da inexistência de normas
específicas estabelecedoras de rotinas de trabalho, a referida IN foi criada para racionalizar
e uniformizar os procedimentos administrativos das Delegacias de Polícia e de serem
determinados métodos eficientes de registros policiais e seu controle. Diante disso, a IN
resolveu que em relação aos Livros e Boletins de Registro Obrigatórios o seguinte:
Art. 1. Fica estabelecido como meio de registro e controle das atividades investigatórias e
administrativas nas Delegacias de Policia do Estado, a utilização obrigatória dos seguintes
livros e boletins:
a) Livro de Registro de Ocorrências Policiais10;
b) Livro de Registro de Queixas11;
c) Livro de Registro de Instauração e Remessa de Inquéritos Policiais e de Processos
Sumários com índice;
d) Livro de Registro de Autos para Diligências Complementares;
e) Livro de Termos de Fiança Criminal com índice12;
10 Primordialmente, o Livro de Registro de Ocorrência é destinado ao registro de toda e qualquer ocorrência
delituosa que se processa mediante ação pública. Por ex., homicídio, furto, etc. Nele podem ser registrados,
também, fatos que, embora não delituosos, têm relevância para o cidadão. Por ex., perda ou extravio de
documentos de identidade, talão de cheques, uma árvore que caiu sobre seu veículo, um acidente qualquer etc.
O registro desses fatos e a expedição de certidão deles, só possível se o fato tiver sido registrado. São
importantes, pois o cidadão interessado vai precisar deste último documento para justificar que alguém tenha
achado sua carteira de identidade, feito uso indevido dela, ou usado criminosamente cheque do talonário
perdido etc. A polícia tem de proceder ex officio a investigação dos fatos delituosos registrados no Livro de
Registro de Ocorrências, independentemente de solicitação da vítima sob pena de omissão.
11 No Livro de Registro de Queixas registram-se os fatos delituosos de ação privada, isto é, que a polícia só
pode agir se o ofendido assim quiser. Ex., calúnia, invasão de domicílio, dano material, estupro, sedução etc.
A opção por registrar os delitos de ação privada em livro diverso teve como motivo maior possibilitar um
resguardo de sigilo maior que dispensado nas delegacias ao Livro de Registro de Ocorrência, a que dão acesso
fácil ao pessoal de rádio e imprensa; o resguardo da privacidade do querelante. Outro objetivo foi o de
facilitar o aceso à parte querelante: o próprio registro, lavrado pelo policial de serviço, no livro do fato por ela
narrado e subscrito já constitui documento suficiente para acionar a investigação. Não fosse isso, a parte
dependeria de alguém (advogado, em geral) para redigir a representação para provocar a instauração do
inquérito policial.
12 Fiança criminal é a liberdade provisória concedida pela autoridade policial ou pelo juiz, nos casos
especificados de infrações penais (contravenção penal e crime) consideradas pela natureza e gravidade da
pena aplicável e mediante o atendimento de preso em flagrante a requisitos de situação pessoal, compromisso
de cumprir com certas exigências de comportamento e pagamento de quantia em dinheiro fixada por lei.
Quanto a natureza e gravidade da pena, a fiança criminal é arbitrada e concedida, pelo delegado de polícia,
nos casos de infração penal punível com detenção ou prisão simples, sendo atribuição do juiz nos casos
puníveis com pena mínima de reclusão não superior a dois anos. Sendo a fiança cabível na alçada do delegado
de polícia, este tem de concede-la ex officio, isto é, independente do requerimento do preso. Se colocar no
xadrez um preso em flagrante cuja situação é cabível de fiança, o delegado incorrerá no crime de abuso de
autoridade. Entretanto quando a alçada de concessão da fiança é do juiz, a parte tem que requerer. O uso da
fiança não é bem utilizado em Pernambuco. Pela lei, se alguém for preso em flagrante e estiver solto mediante
fiança, não poderá ser concedida a ele nova fiança. Ele terá que aguardar preso o seguimento do processo
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f) Livro de Registro de Bens e Valores Apreendidos;
g) Livro de Registro de Detidos;
h) Livro de Protocolo de Documentos Recebidos;
i) Livro de Protocolo de Documentos Expedidos;
j) Livro de Registro de Freqüência ao Trabalho;
k) Boletim de Ocorrência e Providencias Iniciais - BOPI;
l) Boletim de Registro de Entrada de Vítima em Hospital.
Esta prática do uso do Livro de Registro de Ocorrência Reservado está, pois,
oficialmente abolida.13 Mas, continua sendo corriqueiramente usada em várias delegacias.
Um outro modo, é se fazer anotações particulares em papel rascunho que a qualquer hora
pode ser rasgado. Mercê da falta de correição por parte da Corregedoria de Polícia.
Esta prática é usada com o chamado preso de ordem. Em troca de registrar a
ocorrência em um papel rascunho, o prisioneiro se compromete a fazer uma série de
serviços para a autoridade policial. Um dos serviços mais comuns é o de abrir a carceragem
e trazer um detido para interrogatório e retorná-lo ao seu lugar de origem. Deste modo, o
policial não se expõe ao risco de entrar na carceragem. Quando o preso de ordem terminou
de fazer o serviço, o rascunho da ocorrência é rasgado e é como se ele nunca tivesse
cometido algum ilícito pois nada está registrado oficialmente.
A IN também determina que o registro de autos deve ocorrer no momento de sua
instauração, para fim de controle de prazos e da existência dos próprios autos. Até então só
anterior e do decorrente da nova prisão em flagrante. Muitas vezes o juiz opta por relaxar o flagrante quando,
se cabível, deveria conceder a liberdade provisória mediante fiança e assinatura do termo de compromisso
para sua manutenção até o julgamento. Isso manteria o infrator sob a possibilidade real de vir a ser recolhido,
se incorrer no descumprimento dos compromissos assumidos. O índice tem a finalidade de, ao ser preso
alguém em flagrante, facilitar a procura e conferência do eventual registro de seu nome no Livro de Fiança em
razão de prisão anterior porventura ocorrente.
13 No entanto, o Regulamento do Controle Externo da Atividade Policial, assinado pelo Procurador Geral de
Justiça, em 15 dezembro de 2000, determina no artigo 5o., b, que o Ministério Público do Estado de
Pernambuco examine a regularidade das anotações e lançamentos do livro de Registro de ocorrências
reservadas!
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se fazia registro de autos no momento de remetê-los à Justiça. Este dispositivo também é
burlado através das anotações em papel rascunho.
A função da Policia Judiciária não é somente a de apurar infrações penais e suas
autorias. Por ser órgão auxiliar da Justiça Criminal, incumbe, conforme art. 13 do Código
de Processo Penal (CPP), fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à
instrução e julgamento dos processos, realizar diligências requisitadas pelo Juiz ou pelo
Ministério Público, cumprir mandatos de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias;
representar acerca da prisão preventiva. Cabe à autoridade policial dar início ao
Procedimento Sumário, como se juiz fosse, por portaria ou auto de prisão em flagrante.
Assim como a duplicidade de polícias, sem fazer o ciclo completo, resulta em uma
polícia jogando sobre a outra a responsabilidade pela liberação do preso,14 a duplicidade de
instrução do processo criminal, redunda em algo similar. A Polícia se defende das
acusações mostrando que prende e envia o inquérito a Justiça. Esta diz que solta o acusado
devido tanto a demora quanto a pouca confiabilidade das provas apresentadas pela Polícia.
Elas não serviriam, por conseguinte, como elemento de prova na fase processual.
A demora e parca confiabilidade são um problema estrutural. Surge do fato dos
depoimentos produzidos perante a autoridade não terem, em princípio, valor legal de prova.
Quando o acusado e as testemunhas são ouvidos de novo em juízo, surgem novas versões.
Afora o fato de possível intimidação por parte da autoridade policial, a alteração da verdade
pode ser produto de boa fé. O tempo decorrido pode alterar o ânimo da testemunha
influenciada pela repercussão do caso na imprensa e no seio da sociedade, ou a dificuldade
14 A Polícia Militar se queixa de entregar o delinqüente ao delegado e o meliante ser, freqüentemente, solto
devido a ingerência política ou propina. O delegado recebe o detido de um Policia Militar que não lhe está
subordinado, e o faz em situação de completo desconhecimento sobre as circunstâncias que levaram a sua
detenção. O PM também alega que corre risco de vida para capturar o suposto bandido e quem leva os louros
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em localizar a testemunha.15 Em suma, se é difícil investigar um crime no calor da
ocorrência, imagine-se algum tempo depois.
O Ministério Público lava as mãos jogando a culpa ora na Polícia ora na Justiça. O
Ministério Público do Estado de Pernambuco conseguiu, apenas para Recife, que os
inquéritos enviados pela Polícia Civil não precisem mais ir à Justiça. Eles já podem ser
enviados diretamente ao Ministério Público, ganhando-se tempo. No entanto, sem a
mediação dos juízes pode-se por em risco certos direitos individuais. Como assim? É que
Delegados e Promotores tem a mesma função de levantar provas e indícios contra o
acusado. E no inquérito, é o juiz quem atua como fiscal da ação policial e do próprio
Ministério Público, podendo conceder habeas corpus e liberdade condicional.
Com o advento da criação da Central de Inquérito do Ministério Público, os
inquéritos são invariavelmente denunciados. O MP, via de regra, não retorna um inquérito
mal elaborado à Polícia Civil, pois sabe que a tendência é do mesmo não voltar ao MP.16
Ou refaz a diligência ou limita-se a mudar a tipificação penal existente no Boletim
Individual. Por exemplo, o acusado é indiciado por tráfico e o MP o denuncia por porte de
droga.
Isto, todavia, gera um outro tipo de problema apontado por certos juízes. Segundo
os mesmos, muitos Promotores de Justiça só têm acesso aos casos a serem julgados em
da operação é o delegado A Polícia Civil se defende alegando que como o PM não fez o auto de flagrante
corretamente, é obrigado a soltar o detido. Isto acirra ainda mais os ânimos entre as duas instituições. .
15 O Juiz da 2a. Vara do Júri da Capital, Antonio Carlos Alves da Silva, viu-se obrigado a impronunciar o paide-
santo Nivaldo Marques de Paula e o agricultor Luiz Tavares de Souza, acusados, respectivamente, de
serem o executor e o mandante da morte de Margarida Anastácia da Silva. O motivo do arquivamento foi falta
de provas contra os réus. O inquérito passou 16 anos engavetado. O crime ocorre em março de 1979 e teve as
investigações iniciadas pelo então delegado de Homicídios José Edson Barbosa. Ele tomou depoimento dos
acusados, mas o caso só foi retomado em 1995 pelo delegado adjunto, Alcides Garret. Garret informou à
Justiça, em dezembro de 1995, desconhecer os motivos que paralisaram as investigações. E admitiu existirem
provas no inquérito para denunciar os dois homens, mesmo não tendo conseguido localizar as testemunhas e
um dos acusados (Lucena, 1998).
85
cima da hora, pois a triagem que deveria ser feita por esta central não é realizada. Ou seja,
tornou-se uma “fábrica” de oferecimento de denúncias. O promotor passou, mais do que
nunca, a ser mero supervisor de inquéritos, i.e., cada vez mais distante das diligências
efetivamente realizadas para produção das provas. Com isto, cresce, nas varas de Justiça, o
número de inquéritos onde o promotor tem acesso aos mesmos momentos antes de fazer a
denúncia. Ou seja, sem tempo suficiente para estudar o caso. Uma das soluções é o pedido
de arquivamento feitos pelos promotores embora as denúncias tenham sido feitas pelo
próprio Ministério Público. Nestes casos, a Justiça é erroneamente acusada de
comportamento corporativo.17
Como se vê, há um incentivo perverso, na medida em que ninguém é
responsabilizado, para a manutenção deste jogo não cooperativo. Cujos lances, por sinal,
são difíceis de serem acompanhados pelo pesquisador, muitas vezes sob a escusa do sigilo,
quanto mais pela população. Isto gera impunidade e perda da legitimidade do sistema de
aplicação penal. Pudera, de cada 100 crimes violentos registrados das delegacias brasileiras,
a polícia só consegue prender os suspeitos em 24 casos. Desses, a Polícia, Ministério
Público e Justiça conseguem levar a julgamento os envolvidos em quatorze casos. E apenas
um deles cumpre pena até o final.18
Em Pernambuco, o quadro é assustador. Em 1998, ocorreram no Recife, 3.074
homicídios.19 Contudo, foram enviados a Central de Inquéritos do Ministério Público de
Pernambuco apenas 45 inquéritos referentes a este tipo penal. Dois foram devolvidos à
Polícia Civil para novos esclarecimentos, e 43 ações penais foram propostas pelos
16 Cf., Francisco Sales, secretário geral do Ministério Público do Estado de Pernambuco. Entrevista com o
autor, 4 de julho de 2001.
17 Vide o caso da Justiça Militar (Zaverucha, 1999).
18 “Somos todos reféns”, Veja, 7 de fevereiro de 2001.
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Promotores de Justiça. Nenhum dos crimes denunciados foram julgados. Tomando-se em
média 1,09 vítima por inquérito, implica que menos de 2% dos homicídios foram
transformados em inquéritos e encaminhados ao Ministério Público. Neste mesmo ano, os
dois Tribunais de Júri da Capital marcaram 158 julgamentos e realizaram 109. Todos eles
referentes a crimes praticados em anos anteriores.20
Poder-se-ia alegar que índice tão baixo seria fruto de uma longa greve de quase três
meses realizada pela Polícia Civil. De fato no ano de 1999, para 2.787 homicídios foram
enviados ao Ministério Público 173 inquéritos e destes 119 foram remetidos a Justiça. Se
por um lado houve uma melhora no índice de envio de inquéritos ao MP, diminuiu o índice
de inquéritos remetidos a Justiça. Provavelmente a pressa na elaboração de inquéritos
resultou na baixa qualidade dos mesmos.
No ano de 2000, para 2.917 homicídios, 138 inquéritos foram remetidos ao MP e
destes, 100 foram transformados em denúncia. Isto significa dizer que em relação ao ano
anterior, houve uma diminuição tanto no índice de envio de inquérito ao MP como no
índice de denúncia. Vide quadro abaixo.
19 O número base de mortes foi obtido no Instituto de Medicina Legal e diz respeito ao total de casos que
deram entrada como homicídios.
20 Fonte: Observis, ano 1, no. 1, Jan a Mar de 2001. Observis é boletim oficial de notícias do Ministério
Público de Pernambuco.
87
Ano No. de homicídios Inquéritos encaminhados Denúncias feitas pelo MP Julgamento de crimes
ao Ministério Público MP à Justiça praticados
1998 3.074 45 43 0
1999 2.787 173 119 2
2000 2.917 138 100 1
Total 8.778 356 262 3
É bom frisar que o Estado de Pernambuco apresenta os maiores índices de
homicídios por 100 mil habitantes do país. Em termos absolutos, é o terceiro estado com
3.074 homicídios/ano (1998) atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro com 5.650 e 4.586,
respectivamente (Neiva, 1999). Urge um sistema policial eficiente.
Caso a unidade de análise seja a taxa de homicídios por 100 mil habitantes nos
municípios com 20 mil habitantes, Pernambuco obtém lugar de destaque. Se não vejamos
por ordem de maiores taxas: 2o. lugar - Floresta; 4o.- Belém do São Francisco; 6o.-Água
Preta-; 7o.- Limoeiro; 10o.- Serra Talhada; 11o.- Ribeirão; 18o.- Recife; 20o.- Cabrobó,
28o.- Olinda; 32o. Ipojuca; 34o.- Santa Mara da Boa Vista; 42o.- São Lourenço da Mata;
44o.- Abreu e Lima; 45o.- Camaragibe; 46o.- Paudalho; 67o.- Cabo de Santo Agostinho;
71o.- Lajedo; 72o.- Petrolina; 77o.- Caruaru; 80o.- Arcoverde; 83o.- Canhotinho; 84o.-
Brejo da M Deus; 86o.- Jaboatão dos Guararapes; 88o.-Gravatá; 89o.- Igarassu; 95o.-
Bezerros; 99o.-Escada; 100o.- Barreiros.21
21 CF. Folha de S. Paulo, 17 de outubro de 1999.
88
Em 2001, nos três primeiros meses, a Polícia Civil diz ter feito um melhor trabalho
ao remeter ao Ministério Público 11,46% dos inquéritos. Não se sabe ainda quantos desses
inquéritos foram transformados em denúncia. Para agilizar os 2.058 inquéritos que estão
empilhados na Delegacia de Homicídios desde 1974, a Polícia Civil iniciou um mutirão que
espera concluir os inquéritos no prazo de três anos. Para isto a carga horária das novas
turmas de formação de delegados e policiais foram reduzidas, para que eles possam
participar do mutirão. Sem experiência e mal preparados, a emenda poderá vir a ser pior do
que o soneto. Com a nova greve da Polícia Civil, em 2001, novos inquéritos ficarão,
todavia, empilhados nas prateleiras policiais.
Segundo uma avaliação da União de Escrivães de Pernambuco (UEPE) algo em
torno de 7.600 inquéritos se acumulam nas 38 delegacias distritais e metropolitanas de
Pernambuco, 22 por falta de estrutura e pessoal qualificado.23 O conflito de dados
estatísticos ressurge. Dados oficiais da Polícia Civil mostra que a conclusão de inquéritos
aumentou desde 1996. Neste ano teriam sido concluídos 9.084 inquéritos enquanto que em
1999 o total foi de 11.563.24 Dados que colidem frontalmente com os fornecidos pelo
Ministério Público, conforme o quadro anterior.
A CPI do Narcotráfico e da Pistolagem, por sua vez, constatou a morosidade na
instauração de inquéritos quando há denúncias de envolvimento de policiais civis em
22 “Delegacias têm até 7.600 casos engavetados”, Jornal do Commercio, 24 de agosto de 2000.
23 Dicival Gonçalves da Silva, Presidente da União de Escrivães de Polícia do Estado de Pernambuco, em
exposição, em março de 2001, ante a Comissão de Defesa da Cidadania da Assembléia Legislativa de
Pernambuco afirmou: ”Na seção de Cartório onde trabalha o Escrivão, diretamente na elaboração do Inquérito
não dispomos de condições de trabalho, pois não temos computadores, falta material de expediente, armários
de aço, birôs, cadeiras e outros...” Ainda segundo Dicival, “no período de carnaval, visitei as Delegacias de
Plantão, e para minha surpresa, encontrei nelas computadores, ar condicionado para atender a população, e
pasme, voltando após o carnaval, tive mais uma surpresa, retiraram o computador e o ar condicionado, sabem
por que? Porque não era da segurança e sim alugado...” Alguns meses antes, a Secretaria de Defesa Social
adquirira um moderno helicóptero.
24 “Polícia rebate críticas sobre morosidade”, Jornal do Commercio, 6 de janeiro de 2001.
89
atitudes ilícitas. No dia 24 de maio de 2000, os delegados Esdras Marques e Fernando
Costa foram ouvidos na CPI a respeito da falta de conclusão do inquérito que investiga a
fuga do presidiário Jobel Guerreiro da Delegacia de Roubos e Furtos, ocorrida em 4 de
janeiro de 1998. Ou seja, três anos atrás. Como havia a denúncia de que um delegado e três
agentes teriam recebido R$ 30 mil para facilitar a fuga, a CPI concluiu que houve
corporatismo na investigação do caso. O deputado federal Pedro Eugenio lembrou que a
abertura do inquérito, pelo delegado Esdras Marques, só ocorreu no dia 18 de agosto de
1998. No dia 25 de maio de 1999, pediu substituição por não ter condições de investigar a
fuga. O delegado Fernando Costa foi designado para dar continuidade ao inquérito. Mas,
somente no dia 4 de maio de 2000, após a CPI Federal e Estadual já terem ouvido os
depoimentos de Jobel, é que foram solicitados agentes, armas e viaturas e presença dos
policiais acusados para depoimentos.25
Em seu depoimento a CPI, o delegado Marques soltou o verbo. Disse que o
inquérito ficou parado por oito meses na Corregedoria da Polícia Civil por motivo de
corrupção pura por quem começou a investigá-lo na corregedoria. “A intenção foi proteger
as pessoas que deram fuga ao presidiário. Proteger os agentes e o delegado César Urach”
desabafou Marques (ibid.). E foi mais além. Segundo Marques, a fuga de presidiários é uma
questão administrativa e a Corregedoria é quem deveria investigá-la. “É muito fácil
esculhambar o processo e depois me indicar para apurá-lo, sem me dar condições de
trabalho”, disse. Marques acredita que, se o caso for investigado a fundo, muita gente será
25 “Delegados expõem ´fraquezas´da Polícia”, Jornal do Commercio, 25 de maio de 2000.
90
envolvida. Na sua opinião, a CPI deveria pedir a quebra do sigilo bancário de todos os
delegados do Estado, e arrematou “Quem for honesto fica, quem não for cai fora” (ibid.).26
O delegado Fernando Costa jogou o ônus da crítica nos ombros da instituição.
Lembrou que quando foi indicado para tomar a frente do caso, pediu desligamento da
Coordenadoria dos Plantões, onde estava lotado, e solicitou a indicação de um escrivão, de
agentes, armas e viaturas para dar início às diligências, no entanto nada lhe foi concedido.
“Só depois de instalada a CPI federal, me deram as condições necessárias. Por isso, só dei
início aos trabalhos agora”, disse. Ele também deixou clara a falta de estrutura da Polícia
Civil para apurar a criminalidade. “A Polícia Civil não dispõe de condições de
operacionalidade, falta munição, armamento e até papel para xerox para tocar os
inquéritos”, declarou (ibid.).27
O número de inquéritos concluídos em 1999, mas sem que o autor do crime tenha
sido identificado, foi 63% maior do que o total verificado no ano anterior em todo Estado
(Soares, 2001) Aumento tão significativo na impunidade mercê da ineficiência das
investigações policiais, levou o Ministério Público de Pernambuco a editar em dezembro de
2000 o Regulamento do Controle Externo da Atividade Policial. Pelo mesmo, os
Promotores de Justiça começariam a fazer visitas quinzenais às delegacias de polícia para
executar, na prática, o controle externo da atividade policial. Seis meses depois, as visitas
não foram feitas. Será difícil que tal controle venha a se efetivar, pois há 164 cargos vagos
no MP, e o efetivo atual não dá conta de suas atuais atribuições quanto mais de fazer o
controle externo da Polícia.
26 Impressiona a quantidade de delegados que, em off, falam dos colegas que mantém um padrão de vida
acima de suas possibilidades.
27 Ao final dos depoimentos dos dois delegados, os membros da CPI fizeram questão de declarar
publicamente que nada pesava contra os dois delegados.
91
Tal Regulamento gerou divisão na Polícia Civil. Enquanto os delegados mostraramse
insatisfeitos, os escrivães regozijaram-se. Para o presidente da União dos Escrivães,
Dicival Gonçalves, “a presença do Ministério Público nas delegacias é vista por nós como
um sinal de que as coisas podem mudar. Nossa categoria tem esperança de que os
promotores percebam a falta de condições de trabalho e colaborem para sensibilizar o
governo. Existem escrivães que estão acumulando até quatro delegacias no interior e
trabalhando dias inteiros seguidos” (ibid.).
Costuma-se dizer que, via de regra, só se encontra, com certeza, dois tipos de
policiais nas delegacias: os carcereiros para tomar conta dos presos e os escrivães atados
aos inquéritos. Pela lei, o escrivão de polícia é imprescindível para a lavratura dos autos do
Inquérito Policial em cartório.28 Tais autos ficam sob sua guarda e cabe ao mesmo, o
cumprimento dos despachos exarados pela Autoridade Policial. Zelará para que os autos
após cumpridos, voltem às suas mãos conclusos.
. Em caso de impedimento do escrivão, o artigo 305 do CPP determina que a
autoridade policial designe um escrivão ad hoc (para o caso). O significado de ad hoc em
algumas delegacias do interior do estado é elástica. Em vez de ser uma solução para um
caso, o escrivão ad hoc passa a ser um funcionário da prefeitura, i.e., para todos os casos.
Diante do numero insuficiente de escrivão, é comum que agentes policiais façam,
informalmente, suas funções.
O Juiz também se encontra distante do fato delituoso. Limita-se a reproduzir no
marasmo da instrução, o que a autoridade policial colheu no inquérito. E o faz de um modo
passivo levando-o a facilmente tornar-se alheio ao que está julgando. Esta passividade
28 Mas na Delegacia do Turista nem mesmo escrivão há...
92
decorre também do fato de muitos juízes criminais brasileiros não possuírem especialização
penal e criminológica.29 Inseguros, adotam a posição positivista de conservar o conteúdo do
inquérito. Via de regra, não procuram saber as causas do ato criminal cometido, nem o
destino do acusado por ele condenado. Um juiz criminal, deste modo, transforma-se, muitas
vezes, em um burocrata na aplicação da lei penal (Grupo de Trabalho da Delegacia do
Paraná, 1994)
Raros são os países, dentre eles o Brasil, que mantém o sistema investigativo
preliminar policial, sem o controle do Ministério Público. O modelo como se depreende
está falido. O modelo francês do juizado de instrução também se mostra obsoleto. Afinal,
recai numa mesma pessoa, o juiz, o papel de chefiar a investigação e valorar a legalidade da
mesma. Claro conflito de competência.
Importantes países europeus estão adotando o modelo do promotor investigador.30
Neste modelo, o promotor é o presidente da investigação. Ele decide se quer fazer a
investigação ou se necessita de ajuda da polícia, mas sempre segundo os critérios que ele
estabeleça. A Polícia seria uma instituição de auxílio ao Ministério Público na investigação.
Deste modo, terá melhor condição de decidir sobre a formulação da denúncia ou seu
arquivamento. Os poderes de investigação do promotor são limitados pelo juiz da
instrução.31 Ou seja, um juiz para controlar a legalidade no recolhimento das provas, para
autorizar as medidas coercitivas e para fiscalizar a investigação oficial. Como o juiz das
investigações preliminares na Itália, o juiz do controle da legalidade na Alemanha ou o juiz
das liberdades no processo penal europeu (Rodrigues, 2002).
29 Isto pode auferido em toda sua extensão, nas Auditoria Militar Estadual de Pernambuco. O Juiz Auditor,
nunca estudou Direito Penal Militar, nem nas universidades.
30 A Alemanha iniciou tal mudança em 1974, seguida da Itália e Portugal. Espanha e França estão mudando
em direção a este modelo.
93
Portanto, este tipo de juiz não investiga, mas funciona como juiz de garantias civis,
ou seja, intervém na investigação quando o direito do investigado é atingido. Cabe ao
mesmo, conferir a autorização judicial para a realização de medidas limitativas de direitos
fundamentais, como as de natureza cautelar e restritiva de direitos e garantias individuais.
O procurador, por sua vez, presta contas a este juiz por ser da natureza do detentor da ação
penal ser parcial, e por isso mesmo, deve ser monitorado. O julgamento ficaria por conta de
um triunvirato composto de juiz togado (que pode ser o juiz da instrução) e dois leigos.
O inquérito policial não seria extinto, mas simplificado. Os atos de instrução
criminal seriam abolidos tais como os termos de depoimentos. A Polícia Judiciária estadual
deixaria de existir, tornando-se somente investigativa. Tais atos passariam a ser feitos
diretamente ante o juiz, acabando com a duplicidade de procedimentos. O juiz também
contaria com a denúncia da promotoria de justiça que viria acompanhada de provas
documentais e periciais.
Mudança em relação ao inquérito já vem ocorrendo. A Lei No. 9.099/95 suprimiu a
investigação e o próprio processo para as infrações penais “de menor potencial ofensivo”.
Não há mais inquérito policial para apurar os “pequenos delitos”, mas mero Termo
Circunstanciado de Infração Penal (TCIP), preparado pela Polícia. A discussão sobre quem
seria a autoridade policial referenciada por esta Lei continua, todavia, objeto de discussão.
Para a Polícia Civil é o delegado de polícia. Para outros, como o objetivo é economizar
procedimentos para dar celeridade aos processos, o delegado de polícia é uma das
autoridades policiais. Por exemplo, a Polícia Militar do Pernambuco tem enviado os TCIPs
ao Poder Judiciário no interior do Estado, e em alguns casos na capital. No Paraná, o Poder
Judiciário não só aceitou as TCIPs oriundas da Polícia Militar como recomendou a todo
31 Não confundir com juiz de instrução, este sim com poderes de investigação.
94
foro paranaense esta conduta, já sedimentada no Código de Normas da Corregedoria Geral
de Justiça (Sirino & Giostri, 2001).32 Todas estas inovações não modificaram a estrutura do
inquérito existente no Código de Processo Penal, mas lhe criaram possibilidades e adendos.
A verdade é que o inquérito policial da forma como está hoje no Código de
Processo Penal, não acompanhou nem as mudanças da sociedade nem a das instituições que
nela exercem seu ofício.O inquérito policial é um arranjo institucional ultrapassado e que
vai, aos poucos, sendo solapado. Embora não exista o Juizado de Instrução, o Juiz está
autorizado a participar de investigação em casos de crime organizado e de interceptação
telefônica. O Ministério Público, por sua vez, cada vez mais participa da investigação
criminal. Portanto, a Polícia já não mais investiga com exclusividade. Por sua vez, o
delegado é funcionário do Executivo, mas tem uma delegação do Judiciário a quem
está subordinado quando da realização de investigações (Kant de Lima, 1999). Resultado: o
delegado de polícia quer ser do Executivo, mas usufruir os salários da carreira judiciária.33
Todo o esforço feito na esfera policia l continua sendo repetido em juízo. Nada
acrescenta em termos administrativos, pelo contrário, nem de garantias processuais. Se
nada acrescenta, qual a justificativa para manter este ritual? Cerqueira (1998) indaga se não
visa favorecer a rigidez do controle penal dos marginalizados? Ou seria devido ao fato
deste ritual visar defender primeiramente o Estado e o patrimônio? Ou ambos?
32 Em julgado recente (em recurso originário do Estado do Paraná), o Tribunal Superior exarou decisão no
sentido de que esta possibilidade só se concretizasse em localidade onde não existisse órgão policial civil.
33 O novo presidente da Associação de Delegados de Pernambuco (ADEPPE), Roberto Brutus, solicitando
aumento salarial assim se expressou: “... Integramos o grupo das carreiras jurídicas. Participamos, no
nascedouro, da apuração dos delitos. Formamos a prova. E fornecemos os elementos imprescindíveis à
propositura dos delitos. Formamos a prova e fornecemos os elementos imprescindíveis à propositura da ação
penal. É a Polícia Judiciária trabalhando contra a impunidade. Mais que isto. O delegado de Polícia no dia-adia
investiga, aconselha, dirime conflitos, evita o crime. Faz a paz. Regula, na verdade, as relações sociais. O
reconhecimento ao nosso trabalho está longe. Bem longe da realidade. A isonomia salarial prevista na
Constituição Federal é descumprida. Nossas conquistas são solapadas. Nosso direito é desrespeitado. Por
entender legal, justa e legítima nossa postulação, reafirmo minha convicção no Governador Jarbas
95
A verdade é que já há juízes que não encontram lugar definido no inquérito. Tanto
é que alguns Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça de pessoas da Federação
(Pernambuco e Distrito Federal) emitiram provimento abrindo mão da tramitação, pelo
Juízo, do inquérito policial entre Policia e Ministério Público, excepcionadas as hipóteses
de necessidade de intervenção do Judiciário para a fiscalização aos direitos individuais.
Isso sem falar no indiciamento do acusado, que, mesmo sem implicar juízo de culpa
definitiva, traz danos irreparáveis aos cidadãos. É que mesmo depois de pronunciamento de
sua inocência posterior, fica na sua folha corrida a palavra “indiciado” para o resto de sua
vida (Mariano & Serrano Jr., 2000). Não há lógica em se impor ao cidadão mais um
constrangimento, e o Judiciário já excluiu qualquer possibilidade de imputação preliminar
de culpa no procedimento judicial. Tanto é que o juiz só permite que o nome do réu seja
lançado no rol dos culpados depois do trânsito em julgado. No procedimento investigatório
brasileiro, todavia, a prática é outra. Isto fortalece ainda mais o poder do delegado, pois é
ele quem tem a capacidade de indiciar alguém.
Sob a ótica comparada, a situação torna-se ainda mais esdrúxula. Como lembra
Mariano (Anais, 2001), “na Alemanha, no ordenamento processual penal, existe o chamado
procedimento preparatório, que não prevê a inquisitoriedade. Na Espanha, a polícia realiza
diligências de prevenção, que são atos necessários à instrução penal e não consta
indiciamento de pessoas. Na França compete à polícia a investigação e, sob orientação do
Procurador, proceder a enquete preliminar, procedimento apuratório, que não prevê
indiciamento. No México, a polícia deve elaborar um ata onde registra tudo o que se
relaciona ao crime, antes da ação, que nada tem a ver, também, com o indiciamento.”.
Vasconcelos no Judiciário. A Lei no. 11.568/98 precisa ser cumprida. Com o apoio da classe chegaremos lá”.
Jornal da ADEPPE, no. 2, junho de 2001.
96
Há quem advogue que o indiciamento fere a própria Constituição Federal. É que a
mesma admite a presunção de inocência. Na verdade o artigo 5o, inciso LVII, da
Constituição Federal diz: “Ninguém será culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória”. Como não aparece explicitamente a palavra inocência, há quem diga
que o acusado antes do trânsito em julgado não pode nem ser considerado culpado nem
inocente.
No entanto, o parágrafo 2o do mesmo artigo supra citado estipula que “os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte”. Ora, o Brasil em 1992 ratificou o Pacto de San José que prevê no seu
artigo 8o, parágrafo 2o, que “toda pessoas acusada de delito tem o direito a que se presuma
sua inocência, enquanto não se comprove legalmente a sua culpa”. O Pacto de Direitos
Civis e Políticos, adotado pela resolução da ONU, do qual o Brasil é signatário, diz no
artigo 14 que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma a sua
inocência enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa”.
Ora se há a presunção de inocência, não há sentido em se fazer uma indicação
preliminar de culpa. Já há casos em que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo
Tribunal Federal negam a legalidade deste indiciamento. Contudo, nos fóruns de primeira
instância dos tribunais estaduais, a prática do aceite do indiciamento é corriqueira. Convém
lembrar que ao contrário dos EUA, no Brasil o processo é um dever do Estado em vez de
um direito do cidadão. Os processos não podem ser interrompidos mesmo quando o
acusado desiste de defender-se. Caso o cidadão perceba que as autoridades que conduzem o
Inquérito Policial produzem insegurança jurídica, não tem como escapar. Só lhe resta
agüentar o peso do Estado até que os trâmites jurídicos sejam finalizados.
97
98
CAPÍTULO VI
Polícia Técnica-Científica. Ela existe?
Não prestigiar a polícia científica
é facilitar a impunidade—Nelson
Massini.
Auge e declínio
A polícia de carreira, em Pernambuco, foi instituída em 07 de janeiro de 1974. Na
época, a Polícia Técnico-Científica gozava de grande prestígio profissional. Tanto no
ambiente da Secretaria da Segurança Pública, onde se situava, quanto fora dele,
principalmente na comunidade acadêmica. Vários de seus melhores quadros, além de
policiais civis de nível superior, eram professores universitários.1 Havia atividade de
pesquisas e até se publicava, com periodicidade, uma revista divulgando seus melhores
trabalhos de medicina legal e criminalística.
O prestígio desse grupo chegou ao ápice quando um de seus integrantes –Inspetor
Geral de Polícia Técnica, o nível mais elevado de perito criminal – foi nomeado o 42º
Secretário da Segurança Pública desde a criação da SSP em 1931, tornando-se o 13º civil a
assumir esse cargo e, mais importante, o primeiro policial civil de cargo efetivo a chefiá-la,
de 31.07.1970 a 15.03.1971.2
1 Mauro Pamplona, Fernando Persivo Cunha, Armando Hermes Samico, Jaime Santiago, Agrício Salgado
Calheiros, Helena Caúla Reis, dentre outros.
2 Trata-se do perito criminal e professor universitário Armando Hermes Ribeiro Samico, hoje aposentado de
ambos os cargos.
99
Esse grupo, do ponto de vista funcional, é constituído principalmente pelos médicos
legistas e peritos criminais, de nível superior, e pelos ocupantes dos cargos de auxiliares de
legista, auxiliares de perito e datiloscopistas policiais, cargos para cujo provimento é
exigível apenas a escolaridade de nível médio. São representados por quatro entidades de
classe: a Associação Pernambucana de Medicina e Odontologia Legal (APEMOL), a
Associação dos Peritos Criminais (APOC), a Associação dos Datiloscopistas Policiais Civis
(ADAPOC) e o Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (SINPOL), em face de
interesses não coincidentes.
O prestígio dos médicos legistas e dos peritos criminais inegavelmente contribuiu
para o advento da polícia civil de carreira. Quando esta surgiu, os médicos legistas e peritos
criminais eram os únicos policiais efetivos de escolaridade de nível superior. Os demais
policiais civis efetivos tinham, em geral, escolaridade no nível primário e do primeiro grau
e não passavam do segundo grau. Não existiam delegados de polícia efetivos; eram
comissionados e nem todos tinham curso superior. O vínculo efetivo era de importância
vital para o respeito funcional e prestígio profissional de qualquer ocupante de cargo
público.3
Apesar de seu prestígio ter contribuído para a criação da polícia de carreira, a forma
como esta foi estruturada e, sobretudo, as alterações posteriores por ela sofrida, não
sustentaram o prestígio desses profissionais e, pouco a pouco, foram relegando-os a
segundo plano. Desestimulando-os e, sobretudo, provocando ressentimentos com os
delegados de polícia. Esse ressentimento tem a ver, inicialmente, com a expectativa de que
os delegados, como dirigentes/administradores maiores da SSP, deveriam preocupar-se
3 Os comissários de polícia, por serem policiais efetivos, na época, eram geralmente mais respeitados no
âmbito interno da SSP e na comunidade do que os delegados de polícia.
100
com a situação deles também. Sobretudo na questão salarial que desencadeou, não só em
Pernambuco, mas em todo o país, uma onda de separação desses profissionais do corpo da
Polícia Civil. A questão salarial foi a gota d’água que fez transbordar o balde de
ressentimentos. Este já vinha sendo preenchido pela disputa de poder entre delegados e
peritos criminais sobre quem era mais importante na elaboração de um inquérito policial.
Vencedores desta disputa, os delegados de polícia, contribuíram decisivamente para
uma crescente discriminação e desprestígio desse importante grupo de profissionais. Esses
fatos induziram os peritos criminais, médicos legistas e datiloscopistas a se afastarem dos
delegados de polícia.4 Os ressentimentos persistem e a Polícia Civil, como instituição sai
fragilizada. A sociedade perde, pois em vez de haver um incentivo à cooperação das duas
categorias, o que se constata é a rivalidade entre ambas. Com a criação da Secretaria de
Defesa Social (SDS), em 1999, a Polícia Científica passou a ser subordinada a mesma. Foi
um avanço, mas relativo. A Polícia Científica continuou subordinada a autoridade policial,
pois é um delegado, apontado pela SDS, quem controla a Diretoria de Polícia Científica.
Deveria, isto sim, ficar subordinada à Secretaria de Justiça ou algo similar.
Importância da Polícia Técnica-Científica
A Polícia Científica é requisitada em qualquer tipo de ocorrência policial onde há
vítimas. Quando a infração deixa vestígios, é indispensável o exame de corpo delito, direto
ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.5 Os exames de corpo de delito e
4 A rivalidade entre os peritos criminais e os datiloscopistas policiais será posteriormente abordada.
5 Artigo 158, § único, do Código de Processo Penal (CPP).
101
outras perícias serão feitos por dois peritos oficiais.6 O laudo pericial será elaborado no
prazo máximo de dez dias, podendo este prazo ser prorrogado, em casos excepcionais, a
requerimento dos peritos.7
Da boa prova material produzida pela Polícia Científica depende, na maioria das
vezes, a defesa dos direitos e garantias fundamentais das pessoas.8 A perícia se situa numa
posição intermediária entre a prova e a sentença (Gomide, 1999). Há uma disputa entre
peritos e delegados sobre a função da perícia. Para vários delegados a perícia seria linha
auxiliar de colaboração da investigação policial e, portanto, atrelada ao inquérito. Os
peritos, em geral, discordam. Acham que servem em primeiro lugar à Justiça e só depois à
Polícia. Outros peritos, todavia, fazem questão de exibir sua carteira de policial. Símbolo de
status.
A mencionada Lei no. 8862/94 deu uma interpretação distinta a funcionalidade da
perícia. De acordo com a nova redação do Artigo 181 do CPP, “no caso de inobservância
de formalidades, ou no caso de omissões, obscuridades ou contradições, a autoridade
judiciária mandará suprir a formalidade, complementar ou esclarecer tudo”. Ou seja, a
autoridade judiciária e não mais a policial é quem poderá suprir as falhas do laudo pericial
inclusive, ordenando, caso ache necessário a realização de novos exames, por outros
6 Artigo 159. O § 1o. diz: “não havendo peritos oficiais, o exame será realizado por duas pessoas idôneas,
portadoras de diploma de curso superior, escolhidas, de preferência, entre as que tiverem habilitação técnica
relacionada à natureza do exame”. Ou seja, o comodismo de delegados de polícia em nomear seus próprios
agentes policiais de nível médio e primário para o desempenho de tão específica e complexa função, está
legalmente vetado. Esta mudança foi fruto da Lei no. 8.862, de 28 de março 1994 sancionada pelo expresidente
Itamar Franco.
7 Artigo 160, § único do CPP.
8 Vide o caso do Maníaco do Parque, Francisco de Assis, ocorrido em São Paulo. Tido como suspeito da
morte de uma mulher, o sêmen dele foi colhido de uma camisinha, com um cotonete. Algumas gotas foram
depositadas em uma lâmina. Na hora de se fazer análise genética, faltou sêmen, e o cotonete havia sido jogado
fora.
102
peritos. Deste modo, fica prejudicado o tão comum surgimento de “fatos novos” ou
“arranjos”, sempre estranhos ao interesse da Justiça (Pinheiro, 1994).
A Perícia é peça fundamental e essencial à correta aplicação da Justiça. Perícia é
prova objetiva. A deformação dos órgãos periciais especialmente gerada por sua
subordinação inadequada a organismos não-científicos contribui, de modo contundente,
para o aumento da violência e da impunidade. A perícia atrelada à Policia é ainda um
resquício de períodos autoritários.
Curiosamente, a comissão de Juristas, nomeada pelo ex-Ministro da Justiça
Petrônio Portela, através da Portaria no. 680, de 11 de julho de 1979, para o estudo da
violência e criminalidade em seu relatório final chegou a seguinte conclusão quanto a
questões que envolvem os institutos que compõem a chamada Policia Técnica-Científica:
“que estes serviços técnicos hoje sujeitos à Secretaria de Segurança Pública, passem a
integrar o quadro administrativo das Secretarias de Justiça”. Como é de conhecimento
público, tal recomendação feita durante o regime militar, continua sendo, desde 1985,
solenemente ignorada pelos sucessivos governos democráticos.
A Constituição Federal de 1988, denominada de “cidadã”, não avançou
nesse campo. E injustificável que os órgãos periciais ainda estejam atrelados, em alguns
estados, à Policia Civil cuja função exige hierarquia e disciplina, não próprias de função
científica, como a perícia oficial o é, que reclama total independência. Em alguns estados
ocorreu um pequeno avanço. Conseguiu-se que a Polícia Científica ficasse subordinada ao
Secretário de Segurança Pública ou equivalente. Os delegados de polícia inconformados
com a perda de poder, fazem lobby em Brasília para desfazer tal conquista.
Os Peritos Oficiais, por sua vez, queixam-se do comportamento de certos delegados.
Recebi denúncias de que ao receber o laudo técnico após o inquérito ter seguido para a
103
Justiça, certos delegados os engavetam. A manipulação é descoberta no momento em que a
Justiça contata a Polícia Científica para reclamar da falta do laudo técnico solicitado.
É prática em democracias do Primeiro Mundo desvincular a Polícia Técnica da
estrutura orgânica da Polícia Civil e da Secretaria de Segurança Pública. O objetivo é evitar
o possível conluio entre quem investiga e quem faz o laudo de corpo delito. Mencione-se o
fato de ter sido o diretor do Departamento de Polícia Científica de Alagoas quem comandou
a perícia na casa de praia de Paulo César Farias. Lá foram encontrados os corpos dele e
Suzana Marcolina da Silva. O policial era empregado do ex-presidente Fernando Collor há
mais de trinta anos, e trabalhava no jornal “Gazeta de Alagoas” de propriedade da família
Collor.9 Não há nada que desabone a conduta do perito, mas seu trabalho fica sempre sob o
manto da dúvida devido ao conflito de competências.
Inclusive, há denúncias de que laudos periciais são adulterados para esconder
torturas sofridas por cidadãos nas dependências de delegacias. Segundo o ex-presidente da
Associação Brasileira de Criminalística, Antenor José Pinheiro, a alegação é a de que não
se deve denegrir a imagem da polícia por causa da máxima “polícia ajuda polícia”. 10
Opinião similar possuem os presidentes do Conselho Federal de Medicina, Waldyr
Mesquita, e o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal, Anelino de Rezende.
Segundo denúncia feita pelos mesmos ao então Secretário-executivo do Ministério da
Justiça, Milton Seligman, médicos legistas são pressionados em todo o país para eliminar
laudos periciais indícios que incriminem a polícia (Pinto, 1995).
Um caso exemplar aconteceu no final de agosto de 1995 no Instituto de Medicina
Legal (IML) de Brasília. O médico Paulo de Tarso Mendes Diniz fez um exame de rotina
9 “Perito do caso PC trabalha para Fernando Collor”, O Globo, 7 de maio de 1999.
104
no traficante Benjamim de Jesus, preso pela delegacia de entorpecentes. O exame,
obrigatório, é anexado a cada auto de flagrante remetido ao juiz. No laudo, Diniz observou
que o preso tinha marcas de espancamento e choque elétrico nos braços, nádegas e órgãos
genitais. Com isso, o juiz da 2a. Vara de Entorpecentes anulou o flagrante. O delegado
Celso Moreira Ferro Jr. não se intimidou, e encomendou dois novos laudos a outros
legistas. Misteriosamente, o segundo laudo não apontou marcas de tortura. No início de
novembro, quando foi aberto um inquérito para apurar responsabilidades, Diniz passou a
receber ameaças de morte. Licenciado, o médico ficou duas semanas, em 1995, sem sair de
casa, sob proteção da Polícia Federal. Seu pecado foi redigir um laudo verdadeiro. “Isso
não aconteceu comigo nem na época do regime militar”, diz o legista.11
Não prestigiar a Polícia Científica equivale a incentivar a impunidade. A
impunidade pode provir de pressões políticas, mas, também, como lembra o legista Nelson
Massini,12 devido a uma ciência mal aplicada. Fruto de falta de condições de seu exercício.
Manter esta situação é pecar por conivência ou omissão. Massini foi o responsável pelo
laudo oficial que definiu como massacre o confronto entre trabalhadores do Movimento
Sem-Terra e os policiais militares do Pará, em Eldorado dos Carajás. Não foi convidado
para fazer a necropsia de Paulo César Farias. A pessoa enviada foi o legista Badan Palhares
cuja versão de morte seguida de suicídio foi contestada por outros legistas, ensejando a
reabertura do caso PC. Palhares, posteriormente, foi convidado pela defesa dos policiais
militares, a emitir sua opinião sobre o ocorrido em Carajás e discordou do veredicto de
Massini. Alegou que houve confronto.
10 “Sindicância aponta 4 envolvidos na adulteração de laudos do IML”, Correio Braziliense, 18 de fevereiro
de 1994.
11 “Os legistas pedem socorro”, Veja, 29 de novembro de 1995.
12 Caros Amigos, no. 4, março de 1999.
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Outro exemplo fundamental foi o caso Riocentro. O legista Elias Freitas,
responsável pela necropsia do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, revelou
que a bomba tinha explodido no colo do sargento. O responsável pelo Inquérito Policial
Militar, escondeu a declaração do legista e divulgou a versão de que a bomba explodira
entre o banco e a porta direita do Puma onde estava o militar. Ao resolver revelar ao
público o seu laudo, o legista deu subsídios para que a Procuradora Regional da República,
Gilda Berger, votasse a favor da reabertura do caso (Otavio, 1999).
O objetivo da Polícia Técnica é o de prover documentação fidedigna e imparcial
sobre os achados científicos que possam ser relevantes para a investigação do problema.
Desse modo, a Polícia Técnica deve ser praticada em um ambiente imune a política
partidária, onde seja incentivando o profissionalismo e o uso técnico do resultado do
trabalho. Por isso mesmo, deve ser independente dos serviços policiais caso queira ganhar
credibilidade.
É, portanto, equivocada a concepção de que os órgãos periciais fiquem dentro das
estruturas das Polícias Civis, pois eles não são serviços inerentes a Policia, mas a todos os
demais segmentos do sistema de Segurança Pública e da Justiça, conforme determina o
Código de Processo Penal. A assertiva mencionada é sustentada pelas cúpulas dirigentes
das Polícias Civis, como forma de manter poder corporativo e sufocar a atividade pericial.
A atividade pericial é uma atividade essencialmente científica, não se caracterizando
apenas como atividade investigatória. Para maior tranqüilidade do cidadão e da Justiça, essa
atividade não deve ficar, de modo algum, subordinada ao comando hierárquico de quem
preside as investigações. Quando isso ocorre, surgem de imediato as suspeitas de
parcialidade em relação ao laudo pericial e questiona-se a isenção e autonomia da prova.
Vale lembrar que o exame pericial é a única peça constitutiva de inquéritos policiais que
106
não é refeita na fase judicial. Por isso, deve ser realizada com toda independência, isenção e
autonomia científica.
De acordo com a lei, os tribunais só consideram válidos os exames médicos
autorizados pela autoridade policial. Muitas vezes o relato forênsico é a única evidência que
a vítima possui para submeter uma queixa de tortura. Assim como o laudo da autópsia é a
única evidencia de morte por motivo de tortura. Com receio de vingança, vítimas se
recusam a comparecer ao Instituto de Medicina Legal. Procuram exames médicos
independentes e registram o resultado em cartório (Amnesty International, 1996). Muitas
vezes o perito da Polícia Técnica faz trabalho por fora e isto gera rivalidade com o Perito
Oficial que está encarregado do caso.
Há ainda os casos em que o legista se depara com perícias onde ou não há sinais de
violência ou se existem, não podem ser responsáveis pelo óbito verificado. O motivo da
morte, pode ser natural em vez de violento, decorrente de alguma patologia pré-existente.
Na ausência de sinais macroscópicos, a dúvida poderia ser tirada em um Laboratório de
Hispatologia que é imprescindível em qualquer IML. Não no Estado de Pernambuco.
O Departamento de Polícia Científica é composto de três divisões: 1) O Instituto
Médico Legal (IML), dirigido por um médico-legista; 2) O Instituto de Criminalística (IC),
chefiado por um perito; e 3) O Instituto de Identificação Tavares Buril (IITB) dirigido por
um delegado embora a lei faculte a nomeação de um perito. Tal instituto contempla
atividades de polícia administrativa (arquivos de documentos) e de polícia técnica (perícia
datiloscópica). Ou seja, convivem no mesmo espaço físico a identificação civil (emissão de
carteira de identidade) e a identificação criminal (Boletim de Identificação Criminal,
Álbum Fotográfico e Retrato Falado). Portanto, não há motivo para um delegado dirigir o
107
IITB. A não ser o fato do mesmo ter nível universitário ao contrário do datiloscopista
policial.
Passemos a analisar as deficiências das três divisões. Tendo em mente que a demora
na entrega dos laudos do IML, do IC e do IITB prejudicam a tramitação dos processos no
Ministério Público e, por conseguinte, na Justiça. Por exemplo, a Delegacia de Homicídios
ao receber a notícia de um assassinato aciona tanto o IC quanto o IML. Cada órgão chega
ao local do crime em horário diferente não havendo integração na apuração do caso.
1) Instituto de Medicina Legal (IML)13
Historicamente, a partir do final do século XIX, as perícias médico-legais passaram
a ajudar a justiça a desvendar as mortes (Souza, Izumino & Alves, 2001). Cada estado
brasileiro possui seu IML cujos procedimentos de autópsia são similares. Há um formulário
onde são feitas cinco perguntas ao patologista quanto aos ferimentos e os possíveis
instrumentos que as causaram. 14 O patologista deve responder a causa física da morte (por
exemplo, trauma cerebral). No entanto, não é encorajado a esmiuçar nem a respeito dos
mecanismos da morte (os fatores que levaram a morte) nem sobre o modo como ocorreu a
13 Toda pessoa que morre e não tem a morte atestada por um médico deve ser submetida obrigatoriamente a
exames no IML, no caso de morte violenta, ou no SVO (Serviço de Verificação de Óbitos), se for morte
natural. Liberar o corpo de alguém no IML, caso a família não leve a documentação necessária ou a pessoa
incumbida da tarefa não seja um parente direto do morto, é algo burocrático e demorado. O primeiro passo é
comprovar a identidade do morto. Para isso, é preciso levar, preferencialmente, algum documento que
contenha as impressões digitais da pessoa morta. Isto possibilita uma identificação mais rápida. A pessoa que
for liberar um corpo precisa comprovar, por meio de documentos, que tem vínculo com o morto. Se a pessoa
for parente direto é só apresentar a documentação comprovando o parentesco. A tarefa se torna mais
demorada e burocrática caso a pessoa não seja parente direto. Nesse caso, é preciso, primeiro, ir ao IML e
pegar todos os dados relativos ao cadáver e o boletim de ocorrência. Depois, a pessoa tem de ir até a delegacia
para retirar um documento chamado auto de reconhecimento. Só depois disso é que o corpo pode ser liberado.
14 A autópsia procura responder as seguintes questões: 1) Qual a causa médica da morte?; 2) Qual o
mecanismo da morte, ou seja, que fatores levaram a morte?; 3) De que modo ocorreu a morte? (acidente,
homicídio, suicídio, morte natural etc). Vide mais detalhes adiante.
108
morte (por exemplo, acidente, homicídio, suicídio, morte natural, causa não identificada
etc.).15
Deste modo, informações cruciais podem ser perdidas pelo fato de que questões
mais precisas não são elaboradas, e, por conseguinte, não são respondidas. Por exemplo,
alguém morre atropelado. Não se faz dosagem de teor alcoólico no morto. Ele poderia
estar bêbado ou drogado.16 Isto poderia servir de atenuante para o condutor do veículo.
Uma pessoa morreu ao cair do 10o andar. Porém, caiu por estar bêbado, por ter sido
empurrado ou por acidente de trabalho? É também corriqueiro que os legistas, sob a escusa
do acúmulo de trabalho, fazer a necropsia na região do crime, ou seja, na causa mortis. Por
exemplo, uma pessoa dá uma garrafada na vítima e outra pessoa criva a vítima com balas
no tórax. O resultado da causa mortis será os tiros. A garrafada que levou a vítima a perder
sua capacidade de reação não será levada em consideração, pois a análise limitou-se ao
tórax desprezando a região craniana.
Todos os casos recebem, teoricamente, tratamento similar. Isto ocorre pelo fato do
patologista trabalhar em disintonia com a investigação oficial, fazendo um trabalho
rotineiro. Ou seja, os corpos não são acompanhados de informações relevantes a respeito
das circunstâncias da morte. Os princípios 12 e 13 do Corpo de Princípios para uma Efetiva
Prevenção e Investigação de Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extralegal das Nações
Unidas estipulam que aos patologistas deve ser dado acesso às informações relevantes do
caso investigado e tempo suficiente para trabalhar no caso.17 Em caso de morte, há a
15 No Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma de cada seis mortes tem causa
desconhecida, colocando o país num preocupante trigésimo lugar entre 40 países pesquisados nas Américas.
Essa identificação é considerada pela OMS um indicador fundamental para avaliar o grau de acesso da
população de um país ao seu sistema de saúde. “Os mortos e os vivos”, Jornal do Brasil, 13 junho 1998.
16 O IML não faz pesquisa sobre droga em urina. O IC fazia, mas parou.
17 O Código de Processo Penal dá dez dias para realização da perícia, prorrogável por quanto tempo for
necessário.
109
recomendação de que os mesmos tirem fotografias coloridas dos corpos antes, durante e
após a necropsia (Amnesty, 1996).
Quando não há morte, os médicos-legistas limitam-se a fazer quatro quesitos
oficiais: 1) Houve lesão à integridade corporal ou a saúde do examinado?; 2) Qual o
instrumento que o ocasionou?; 3) Da lesão resultou debilidade permanente de membro,
sentido ou função, perigo de vida, aceleração de parto, incapacidade para as ocupações
habituais por mais de 30 (trinta dias); 4) Da lesão, resultou deformidade permanente, perda
ou inutilização de membro, sentido ou função, enfermidade incurável, incapacidade
permanente para o trabalho, aborto? Os laudos periciais são, em geral, respondidos
monossilabicamente e sem fotografias, o que torna difícil comprovar a possível prática de
tortura. Por exemplo, o Promotor de Justiça e Secretário Geral do Ministério Publico do
Estado de Pernambuco, Francisco Sales de Albuquerque, recebeu uma denúncia de que
cinco detentos haviam sido espancados, um deles na delegacia de Olinda.18 Solicitou no dia
3 de julho de 2001, através do Ofício SGMP no 107/01, os laudos periciais dos mesmos.
Pediu ao IML que fossem feitas fotografias. O IML perguntou se o Ministério Público
poderia repor os filmes. O Procurador disse que sim, mas os laudos chegaram sem as
fotografias, impedindo-o de provar a possível existência de tortura.19
No Brasil, e em Pernambuco, o máximo que se conseguiu chegar foi a separação do
IML da direção da Polícia Civil desde que continuasse subordinada à Secretaria de Defesa
Social, ou seja, à autoridade policial. Durante a Revisão Constitucional de 1993 os peritos
tentaram que o Congresso fizesse tal desvinculação. Sem sucesso. Em 20 de junho de
1996, os Peritos Oficiais Brasileiros, reunidos em Brasília, no auditório do Espaço Cultural
18 A pessoa ao entrar e ao sair da carceragem da Polícia Federal faz exame de corpo delito por um médicolegista
de plantão. Na Polícia Civil, isto não ocorre.
110
da Câmara dos Deputados, quando do encerramento da I Jornada Nacional sobre
Autonomia da Perícia Oficial, promovida pela Comissão dos Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados -CDHCD, Associação Brasileira de Criminalística - ABC e Sociedade
Brasileira de Medicina Legal -SBML, deliberaram:
I) Ratificar a luta pela autonomia da função pericial pública, executada pelas instituições de
Criminalística e Medicina Legal, com a sua inserção nos dispositivos que tratam das
funções essenciais a Justiça na Constituição Federal do Brasil, no sentido de otimizar o
sistema de administração de justiça do país;
II) Denunciar o sucateamento dos Institutos de Criminalística e de Medicina Legal,
responsáveis pela produção das provas técno-científicas essenciais para a instrução dos
processos criminais, e dos institutos de Identificação, responsáveis pela identificação civil e
criminal.
Portando, é preciso estabelecer a efetiva autonomia funcional 20, administrativa 21, e
financeira22 dos Institutos de Criminalística, Médico-Legal e Identificação, vinculando tais
institutos seja a Secretaria de Saúde, Justiça ou às Universidades Públicas. Inclusive, o
Decreto Presidencial no. 1.904, de 13 de maio de 1996, que criou o Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH) sinalizou neste sentido. Uma das medidas de médio prazo
19 Entrevista com o autor, 4 de julho de 2001.
20 Autonomia funcional é aquela em que seus profissionais tenham assegurado—através de uma estrutura
independente—condições de trabalho adequadas e imunes a qualquer tipo de ingerência operacional na
execução do trabalho pericial. A fim de que o perito tenha condições de expedir o seu laudo sem qualquer
interferência de partes interessadas e que venham a prejudicar o resultado do seu exame pericial
21 Autonomia Administrativa é aquela em que propicie aos órgãos periciais serem reunidos em uma estrutura
própria, com os peritos administrando os seus Institutos. Possibilitando que seus técnicos—que são os que
realmente conhecem as suas necessidades técnicas e administrativas—possam criar mecanismos eficazes de
gerenciamento e com isso ter-se um trabalho a altura do que cada um tem condições de oferecer.
22 É a mola propulsora de todo um processo de autonomia para a perícia. A autonomia administrativa somente
se complementará se os órgãos periciais tiverem dotação orçamentária e poderem executá-la. É questão de
lógica: os técnicos—Peritos Criminais ou Médicos-Legistas- têm melhores condições de definir que tipo de
equipamento é necessário para o seu trabalho. O perito terá, com isso a possibilidade de aliar o conhecimento
da necessidade técnica as disponibilidades financeiras.
111
proposta pelo PNDH foi o de “fortalecer os Institutos Médico-Legais ou de Criminalística,
adotando medidas que assegurem a sua excelência técnica, e, progressiva autonomia,
articulando-os com universidades, com vista a aumentar a absorção de tecnologias (Diário
Oficial da União, 14 de maio de 1996). Em Pernambuco, esta sinalização vem sendo
desobedecida”.
Existe no Estado de Pernambuco apenas três Institutos de Medicina-Legal: em
Recife, Caruaru e Petrolina. Isto significa que grande parte dos crimes ocorridos na região
do Sertão Central não contará com o laudo do perito forense. É prática o delegado requisitar
um médico local, que pode ser um pediatra ou ginecologista, para atestar a causa mortis.
Quando o inquérito chega ao tribunal, um bom advogado consegue anulá-lo lembrando da
necessidade do laudo oficial do IML. Mais um mecanismo gerador de impunidade.
As instalações do IML de Recife são precárias. Em entrevistas com peritos forenses
fiquei sabendo da ausência de material básico, como luz de foco, mesa de exame
ginecológico; colposcópio (microscópio de maior potência que permite melhor enxergar
uma lesão); não há intensificador de imagem na divisão de tanascopia; não há laboratório
para exame de DNA; não há óculos para proteger o legista de luz ultravioleta; não há
instrumento de dosagem de fosfataste ácida que, entre outras coisas, serve para detectar a
presença de esperma numa vítima de estupro; há dificuldade na obtenção de material
descartável como espátula, espectro, cotonotes etc.;23 as lâminas para exames
microscópicos na divisão de patologia são muitas vezes levadas pelos médicos para serem
feitas em laboratórios particulares; não há necropsia à noite nem de urgência; o aparelho de
raios-X está ultrapassado; não há um aparelho deste tipo para a necropsia e o mesmo vem
emprestado de outra divisão; a sala de informatização, depois de um ano inaugurada, pifou
112
por falta de manutenção, e hoje a sala é usada para datilografia. Por conta disso, o mapa
estatístico das mortes é feito manualmente e lentamente.
Em 1998, só havia duas viaturas24 e uma estava quebrada e muitas vezes, alugam-se
carros de casas-funerárias. Mesmo com a criação da Secretaria de Defesa Social (SDS) o
IML continuou abandonado. A situação das urnas funerárias e das viaturas do IML está
uma penúria. O pessoal que trabalha na remoção desses corpos anda sem equipamento
especiais de proteção e é obrigado a dirigir aqueles veículos que há bastante tempo não
passam por uma revisão. Aliás, dos quatro veículos que fazem parte da frota, apenas um
continua em operação porque os demais estão quebrados e ninguém sabe quando sairão das
oficinas.
O desinteresse da SDS é também com as urnas, onde são acomodados os corpos
nas prateleiras das viaturas. Devido ao tempo de uso, ficaram desgastadas e já deveriam ter
sido trocadas por outras adaptadas, de pegadores, para facilitar o trabalho dos homens
encarregados desse serviço. Em qualquer lugar do mundo, após os procedimentos legais, o
corpo da vítima é envolvido num saco plástico, com fecho. Em seguida, uma dupla de
funcionários transporta o corpo para o local onde se encontra a viatura.
Aqui o descaso é de tal monta que, no dia 5 de fevereiro de 2001, um repórter
policial ao cobrir o resgate de vítimas de um duplo homicídio ocorrido na Vila Aritana, na
Guarabira, teve que descolar “a grana da cachaça” para um popular transportar nas costas
os corpos das vítimas. Segundo o relato do jornalista, “as urnas estavam ocupadas. A única
que restava não oferecia condições para uma só pessoa transportá-la devido a distância de
23 A maior parte do material descartável chega ao IML através de doações.
24 Os veículos não têm sequer estepe, triângulo e extintor, equipamentos obrigatórios. Só tem macaco e chave
de roda. Se fossem parados por uma blitz policial, os carros teriam que ser apreendidos...
113
ao difícil acesso ao local onde os corpos se encontravam. Alguém se habilitou e os corpos
foram retirados do local” (Ferreira, 2001).
O médico-legista dificilmente vai ao local do crime; funcionários recebem um
número insuficiente de luvas para o trabalho de remoção de cadáveres por isso já levam nos
carros jornal velho 25; não se investe no treinamento de funcionários e até chega a faltar
servente para manter a limpeza.
Parte das instalações do IML é caso para a Vigilância Sanitária. A região em torno
do IML tornou-se urbanizada, mas mesmo assim os que cuidam dos mortos não parecem
muito preocupados com a segurança dos vivos. Há manchas de sangue, de cadáveres
necropsiados, na calçada do IML. Tamanha falta de higiene deixa a Rua Pedro Afonso malcheirosa
além de por em risco a saúde dos transeuntes (Parente, 2001). E mais. Os resíduos
provenientes das necropsias realizadas no Instituto de Medicina Legal (IML) eram
despejados, até dezembro de 2001, na rede coletora de água pluvial de Santo Amaro, bairro
onde está localizado o IML, e não na rede de esgoto.26 Além disso, o IML não possui
licença ambiental para funcionar.
O descaso também ocorre na área interna do instituto. Existe um lugar conhecido
por “Coréia” em alusão a guerra travada neste país. Nos fundos do prédio ficam expostos
ossadas de cadáveres exalando um cheiro insuportável, pondo em risco a integridade física
tantos dos funcionários dos IML quanto da vizinhança.
”Devido à tamanha carência de equipamentos e falta de condições em geral é que
pelo menos 20% das causas mortis dos crimes em Pernambuco ficam como
indeterminadas”, diz a médica-legista Clene Magalhães. Enquanto isto, tal percentual fica
25 “IML só tem uma viatura para recolher cadáveres”, Jornal do Commercio, 12 de dezembro de 1998.
26 ÏML joga mesmo resíduos na rede coletora de água”, Jornal do Commercio, 27 novembro de 2001.
114
em 5% em outras partes do mundo, acrescenta o diretor do IML, William Amaral (Pontes,
1998). Eis um exemplo de como a ineficiência da Polícia Científica contribui para a
impunidade. Quarenta médico-legistas foram aprovados em concurso público em 1997.
Somente, às vésperas do Carnaval de 2001 é que foram efetivados.27
Este índice pode até aumentar. Desde janeiro até pelo menos março de 2000, os
equipamentos de revelação de fotografias do IML estavam quebrados. Por conta disso, mais
de 70 filmes foram arquivados. Esta situação vexatória atinge em especial as famílias que
tiveram parentes enterrados como indigentes. Sem fotos, não há como reconhecer os
corpos.
Cerca de 15 pessoas são enterradas por mês como indigentes por terem chegado ao
IML sem identificação. Como assinalou um funcionário do IML: “Para identificar cadáver
no IML hoje é na base do ´peneirão´. Com a descrição física da pessoa, vai-se eliminando
as possibilidades até chegar a um número menor de corpos. A família tem que ter sorte para
conseguir achar o paradeiro do morto. Os mais difíceis de localizar são os homens com
faixa etária de 19 a 25 anos. Como a quantidade de pessoas mortas nessa idade é muito
grande, nem sempre as características repassadas pela família são suficientes para
reconhecer o corpo. Uns ficam com o olhar triste. Outros choram. Mas, como é sempre
gente muito pobre, eles terminam indo embora sem reclamar muito”.28
A situação afeta também as pessoas que procuram o IML para fazer exames
traumatológicos sem nenhuma identificação.29 Pelas normas do instituto, qualquer um que
27 “Nomeados 40 médicos legistas”, Folha de Pernambuco, 23 de fevereiro 2001.
28 “Sem foto, IML dificulta reconhecimento de corpos”, Jornal do Commercio, 13 março de 2000.
29 Estima-se que 30% da população brasileira não possui registro de nascimento e, conseqüentemente de
morte (Salomon, 1996). O registro de nascimento é considerado o ato inaugural de cidadania.
115
chegue para ser submetido a exame sem documento, tem que ser fotografado. Junto com as
digitais, a fotografia é o único registro que fica nos arquivos do IML.
Os médicos legistas se vêem muito mais como médicos forenses do que como
policiais. Via de regra sentem-se desprestigiados e assim como os agentes policiais revelam
desapreço pelos delegados de polícia. Contam que há laudos técnicos enviados a Secretaria
de Segurança Pública que desapareceram e que os juízes se queixam ao perito forense dos
motivos dos laudos não estarem chegando à Justiça. Quando alguns foram indagados sobre
qual o motivo de tamanho descaso da Polícia Civil com o IML, tinham a resposta na ponta
da língua: alguns delegados não têm interesse em tornar o IML eficiente pois uma Polícia
Científica competente poderia produzir provas contra eles mesmos!!!
Há ainda a defasagem salarial a acirrar o relacionamento. De acordo com o então
diretor do IML, William Amaral, com 24 anos de atuação no setor, ao iniciar sua carreira o
salário-base do médico-legista era o mesmo dos delegados, ou seja vinte mínimos. “Hoje
nosso salário-base fica em torno de cinco mínimos e 48% menor que o dos delegados”
(Pontes, 1998).
É comum a disputa entre o Sindicato de Policias de Pernambuco (Sinpol) e a
direção da Polícia Civil sobre o número de mortes ocorridas durante grandes eventos como
o carnaval. O Sinpol procura mostrar o alto nível de violência, numa tentativa de criticar a
condução da política criminal do Estado. Já a cúpula da Polícia Civil tem interesse inverso:
mostrar serviço. Quem sai prejudicado é a verdade.
Por exemplo, o Sinpol tornou pública a cifra de 532 homicídios ocorridos na Região
Metropolitana do Recife entre os meses de janeiro e fevereiro de 1999. Isto representou um
aumento de 10% em relação ao mesmo período do ano passado. No outro dia, o Governo
116
do Estado em nota oficial da Secretaria da Imprensa disse ser 496 o número correto.30 De
pronto, a diretoria do Sinpol procurou rebater a referida nota. Voltou ao IML, mas não teve
acesso ao livro de registros de homicídios. As anotações estavam sendo feitas em
rascunhos, como aconteceu no Carnaval do ano passado. "Querem mascarar a situação",
criticou o vice-presidente do Sindicato, Cláudio Marinho. O diretor do instituto, William
Amaral, defende-se dizendo que o livro estará logo disponível "Não podemos deixar que
qualquer pessoa manipule um material que serve de documento", argumentou (Ibid). A
inexistência de uma única instituição fazendo o ciclo completo de polícia, acarreta
problemas também na atuação da Polícia Científica. Em geral, quem primeiro chega ao
lugar de acidente é a Polícia Militar. Como esta é treinada para o policiamento ostensivo,
não sabe guardar devidamente o local da ocorrência policial. Isto faz com que, muitas
vezes, o laudo pericial fique prejudicado (Torres, 1998). Em especial, quando o PM retira
os corpos de vítimas dos locais onde foram baleadas.31 Tanto é que o Código Penal
considera crime quem altera o cenário do crime seja através do art. 319 (prevaricação); art.
348 (favorecimento) e art. 350 (exorbitância).
2) Instituto de Criminalística (IC)
Os Peritos podem ser oficiais e, no processo penal, em regra, integram os quadros
da Policia Judiciária. Ou não oficiais: pessoas idôneas nomeadas para prestar seus serviços
em cada processo em particular. Decisão do Supremo Tribunal Federal estipula que
30 “Estado diz que morreram 496 em 2 meses”, Diário de Pernambuco, 5 de março de 1999.
31 A Policia Militar alega que para não se acusada de omissão de socorro, retira dos locais as vítimas que
ainda não morreram. Morrem, segundo a versão policial, nos hospitais para onde são levadas.
117
nenhum servidor público, mesmo pertencente aos quadros da Polícia Civil, pode substituir
o Perito Oficial na produção da prova material do delito penal (Mirabete, 1995).
Os Peritos Oficiais são regidos pelo Código de Processo que os inclui entre os
auxiliares de justiça. A Lei.no. 8.862 de 28 de março de 1994 estipula que perito só presta
esclarecimento a juiz. Tais profissionais estão sujeitos a disciplina judiciária (art. 45), e à
suspeição dos juízes (art. 280), e impedindo, ainda, que as partes intervenham em sua
nomeação (art. 276). Por força de lei, devem fornecer os dados instrutórios de ordem
técnica, procedendo ao estudo e análise dos elementos que compõem o corpo de delito.
Por força de lei os exames periciais devem ser feitos por dois peritos oficiais, que,
desempenham suas funções independentemente de nomeação das autoridades policial ou
juiz, uma vez que a investidura desses técnicos advém de lei. Embora a autoridade policial
possa prescindir do laudo pericial para a conclusão dos inquéritos, ainda assim prefere
aguardar a peça produzida pelos peritos para remeter os autos ao Ministério Público ou ao
Judiciário.
É fato que a autoridade policial, por dever de ofício, determina, se for o caso, que se
proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias. Entretanto, não possui
poder discricionário para determinar ao perito que aja ou deixe de agir, por não poder atuar
de acordo com sua conveniência ou interesse, porém apenas dentro do estrito ordenamento
jurídico. Caso fosse possível interpretação diferente, as autoridades policiais poderiam
dispor ao seu bel-prazer dos objetos relacionados com os locais de crime, o que não
acontece, pois a lei permite a sua manipulação tão-somente após a liberação dos peritos. Da
mesma foram, é vedado a toda autoridade transferir atribuições a qualquer funcionário
pertencente aos quadros das polícias civis, que não estejam legalmente investidos no cargo
de perito, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.
118
É plenamente justificável que o perito forneça ao juiz materiais e opiniões que
podem guiá-lo na formação de seu convencimento, embora não esteja preso ao seu laudo.
Natural que se estenda aos peritos o disposto sobre a suspeição dos juizes, no que lhe for
aplicável. Tudo se levando em conta ser ele um auxiliar de Justiça. Além da extensão das
causas de suspeição dos juízes aos peritos, estão estes impedidos por razões de indignidade,
de incompatibilidade e de incapacidade. Há, também, a incompatibilidade para os que já
tiverem prestado depoimento no processo ou opinado anteriormente sobre o objeto de
perícia. Mesmo a opinião anterior fora dos autos sobre a perícia pode trazer a
incompatibilidade em si mesma, por comprometer a imparcialidade do perito.
O descaso do poder público com o Instituto de Criminalística, ao longo dos anos,
impressiona. Basta dizer que no início dos anos 60, o IC era muito mais aparelhado e
eficiente do que atualmente, no início do novo milênio. Em plena época da Guerra Fria e
preocupada com a escalada comunista, os Estados Unidos, através da Aliança para o
Progresso, doou equipamentos que tornaram o IC de Pernambuco referência nacional. O
objetivo era propiciar a Polícia um braço investigativo científico que facilitasse a
localização dos adversários políticos.
Finda a motivação política, o poder público pernambucano conseguiu sucatear o IC.
.Na sala de exames físico-químicos, os microscópios são de 1962. No setor de confecção de
laudos, 60% deles são feitos ainda nas máquinas de escrever. Para fazer alguns testes é
necessário encaminhar material à Paraíba. Não há política de compra de equipamento. O
que há hoje é o elementar. A lupa é do próprio perito; os peritos se cotizam para comprar
119
colchões para seu dormitório. A Sala de Fotografia, uma das poucas bem-conservadas, foi
pintada pelos próprios peritos que inclusive arcaram com os custos da compra da tinta.32
Como não há esterilização nos laboratório o risco de contaminação por parte dos
funcionários é altíssimo. “Eu tive um problema de pulmão por causa da falta de um
exaustor. Outros colegas já tiveram até hepatite por causa da insalubridade”, afirmou Leila
Gouveia, ex-presidente da Associação de Peritos Criminais (APOC).33 Não fica nisto o
descaso com a integridade física dos peritos: bombas de fabricação caseira estão
acondicionadas de forma irregular em geladeiras (Ibid).
Por falta de computadores mais de 600 laudos aguardam a vez de serem
datilografados; o IC não dispõe de um audiógrafo para identificar vozes ou de uma simples
filmadora; o teste de resíduo de pólvora é feito de uma forma insuficiente, pois o
espectofômetro existente é incapaz de separar o nitrato da bala do cigarro34; o cromatógrafo
está com defeito e não pode fazer análise de gasolina adulterada; no laboratório de Análises
Físico-Químicas, considerado o coração do instituto, falta ar-condicionado, e ratos, em
busca de drogas, invadiram os armários destruindo provas de crimes. Provas de crime
também foram danificadas por causa de infiltração nos setores de desenho técnico e
balístico. Neste setor, armas velhas e enferrujadas estão espalhadas pelo chão como se fosse
um depósito de sucata. Na ausência de armários, os funcionários foram obrigados a amarrar
com uma corrente revólveres e pistolas para evitar possíveis furtos. Também por falta de
espaço para acondicionamento, o chão está abarrotado de perícias antigas e outros
32“ Sinpol mostra deficiência do IC”, Diário de Pernambuco, 7 de março de 2001.
33 “Prédio do IC corre risco de desabar”, Jornal do Commercio 7 de março de 2001.
34 Caso um policial fumante acione o gatilho de sua arma como, nestas condições, saber de onde provém o
nitrato?
120
documentos entre o primeiro e segunda andar do edifício-sede. Este material foi retirado
dos armários existentes para dar espaço aos documentos mais novos.
Na Sala de Documentoscopia, onde são feitas as perícias, é, no mínimo, deficiente.
"O material que mais chega para avaliarmos são fitas cassetes e de vídeo, mas não temos
aparelho de TV ou um videocassete na sala", comentou o atual diretor da APOC, Artur
Jorge Lira.35 Resulta que muitos dos materiais para análise terminam sendo levados para
uma única sala do prédio onde há videocassete, para casa ou para outra instituição.36
Vide o caso instaurado pela Portaria no. 1647/97 (Gabinete da Secretaria de
Segurança de Pernambuco) no dia 21 de novembro de 1997. Através da mesma, o delegado
José Edson Barbosa encaminhou ao Instituto de Criminalística o oficio no. 12/97
solicitando Perícia Audiográfica em quatro fitas de vídeo VHS. O procedimento
desenvolvido no exame pericial limitou-se a ouvir e transcrever o conteúdo gravado na
parte de áudio das fitas. Não foi feita a identificação das vozes ouvidas como oriundas de
pessoas cujos nomes foram citados. Conforme o laudo, [como] “existem avançados
recursos tecnológicos, dublagens, montagens, imitação de vozes e outros truques, que
permitem modificação total ou parcial da realidade [e] o Instituto de Criminalística da
Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, não dispõe dos equipamentos necessários
e adequados para detectar quaisquer artifícios ou fazer identificação das vozes, como
computadores com programa específicos na área, aliadas evidentemente para tal
identificação, a vozes gravadas e dos suspeitos para comparação”.
O problema não é só de falta de verbas, mas também de administração. Por falta de
manutenção, o edifício-sede do IC encontra-se em precárias condições. A situação é tão
35 “Sinpol mostra deficiência do IC”, Diário de Pernambuco, 7 de março de 2001.
121
grave que o Superintendente de Engenharia da Secretaria de Defesa Social alertou para a
necessidade de uma reforma imediata do prédio caso contrário o mesmo poderia desabar.37
Não é para menos, as infiltrações corroem as paredes deixando ferragens à mostra e cupins
corroem a madeira das janelas.
Na cena do crime, o perito conta apenas com uma prancheta, papel, caneta e...com
sorte algum veículo para transportá-lo: o IC possui apenas quatro viaturas, sendo duas
alugadas. Falta não apenas material sofisticado, mas até mesmo instrumentos básicos como
pinças e envelopes plásticos pra recolher projéteis, documentos ou qualquer material que
ajude a levar ao autor do crime. Numa ocorrência acompanhada por um jornalista
(Machado, 2000), os peritos pediram uma folha de papel para guardar os projéteis! A falta
de computadores para o preparo dos retratos-falados, diante deste quadro, não se constitui
surpresa.
De um outro problema padecem os peritos. O Código de Processo Penal determina
que a polícia tem obrigação de preservar a cena do crime até a chegada dos peritos. Objetos
só podem ser retirados após serem examinados pelos peritos. No entanto, segundo números
do IC, a descaracterização total dos locais onde acontecem os homicídios ocorre em 95%
das ocorrências (Soares, 1999). É a própria Polícia, seja civil ou militar, a primeira a tirar as
provas do seu devido lugar. Quando o perito chega é tarde demais. Perpetua-se um círculo
vicioso onde responsabilidades não são apuradas.
A defasagem entre o número de peritos e o número de ocorrências é gritante. Em
especial no interior do Estado. O IC tende a ser, como de resto toda a Polícia Civil,
basicamente, um órgão da Região Metropolitana do Recife. Medida simples para
36 Com a profusão de fitas gravadas irregularmente no país, a perícia sobre a veracidade da mesma vem sendo
atestada por peritos da Unicamp em vez de peritos da polícia.
122
interiorizar as atividades do IC como a tomada pelo governo do Maranhão poderia ser
copiada. A governadora Roseana Sarney, adquiriu uma unidade móvel do IC equipada
com kits de laboratórios importados dos EUA, ao custo de US$ 800 mil apta para realizar
vários exames criminológicos.38 O veículo será utilizado para atender principalmente as
cidades afastadas da capital
Os números do IC, fornecidos em 8 de outubro de 1998, os números abaixo falam
por si:
Estatística
Número de peritos criminais na capital---- 107
Número de peritos criminais no interior---- 04
Número de auxiliares---- 105
Número aproximado de morte por ano---- 1628
Número aproximado de acidentes de trânsito por ano---- 1806
Número aproximado de outras perícias/ano---- 1930
Total aproximado de casos por na---5.364
Finalizando este quadro desolador, o IC vem dando sua contribuição no desrespeito
às leis do país. Decreto assinado pelo ex-governador Joaquim Francisco Cavalcanti
concedeu o nome de Armando Samico ao edifício-sede do Instituto de Criminalística, em
homenagem ao único perito que dirigiu a Secretaria de Segurança Pública. Com certeza, o
Professor Samico contribuiu para a criação e aparelhamento do IC. Todavia, a Constituição
Estadual veda o uso de pessoas vivas em prédios público e até este momento o professor
Armando Samico goza de boa saúde.
37 “Prédio do IC corre risco de desabar”, Jornal do Commercio 7 de março de 2001.
38 “Lobão elogia combate ao crime no Maranhão”, Jornal do Senado, no. 1.254, 13 março de 2001.
123
3) Instituto de Identificação Tavares Buril (IITB)
O criminalista James Barr disse que o crime pode estar na ponta dos dedos. Ou seja,
impressões digitais contam e, muito. O sistema dactiloscópico usado no Brasil é o
preconizado por Juan Vucetich. Ele não é o inventor da datiloscopia, mas de um sistema
prático e original de classificação dos desenhos papilares. Tal sistema foi inaugurando em
1891 com 35 pessoas, cujas fichas ainda se conservam, em parte no Museu Vucevitch de
La Plata. São empregados quatro tipos fundamentais, a saber: arco, presilha interna,
presilha externa e verticilo, aplicados na maioria dos sistemas policiais do mundo. A
combinação dos tipos fundamentais distribuídos pelos dez dedos permitem obter 1.048.576
fórmulas dactiloscópicas. (Chiarotti & Dada, 1976)
O IITB concentra todas as informações, cadastros (criminais e civis) do Estado de
Pernambuco. O ideal seria que a parte criminal ficasse sob a responsabilidade da Polícia
Civil e parte civil com outra instituição. No ano 2000, estimava-se algo em torno de trinta
milhões de documentos gerados e/ou absorvidos e tratados pelo sistema. Este acervo
constitui um valioso passivo à disposição da cidadania, do judiciário da segurança pública e
de interesses estratégicos diversos. Assim, seria de se esperar segurança na
operacionalidade de tal patrimônio, o que infelizmente não se verifica. Nas atuais e
precárias condições de arquivamento naquele Instituto, um eventual incêndio faria
desaparecer quase que um século de identificação civil e criminal em Pernambuco.
Observa-se, também, que o tráfego de pessoas estranhas ao serviço é muito intenso, em
função da confecção da carteira de identidade na sede do próprio IITB. Este movimento é
muitas vezes maior que nos próprios postos que foram criados com o fim específico de
atendimento ao cidadão. É comum assistir-se em horários de atendimento ao público que
124
demanda carteira de identidade, a bizarra e perigosa cena de criminosos de risco serem
conduzidos com parca segurança, algemados, às vezes sem camisas com o fito de serem
identificados criminalmente nas dependências do Instituto. Tais criminosos, portanto,
transitam no mesmo salão onde se encontra o desavisado cidadão comum, como se não
fosse possível uma ação de tentativa de resgate daqueles pondo em risco os inocentes.
A confecção de uma Carteira de Identidade gera um verdadeiro amontoado de
documentos chamado internamente de “serviço” constituindo-se de: 1) ficha de índice
nominal (nome do identificado, nome de seus pais e a impressão do polegar direito); 2)
formulário individual dactiloscópico (nome do identificado; coleta de impressões dos dez
dedos; classificação por tipos dactiloscópicos primários e secundários); prontuários (dados
pessoais do identificado, local de nascimento, características físicas, filiação nome do
cônjuge; 3) cédula da identidade (novamente coleta da impressão do polegar direito e dados
pessoais). Apenso a tudo isso se deve anexar cópia do registro de nascimento e/ou
casamento e o formulário do DARF constando o pagamento da taxa. Quando todo este
material chega ao IITB segue para diversos setores onde os documentos são desmembrados
e alocados em diversos arquivos de aço.
A obtenção da segunda via de carteira de identidade gera desperdício tanto de tempo
como de material. O cidadão comparece com os mesmos documentos apresentados durante
a emissão da primeira via. Todas as etapas do processo são então repetidas duplicando,
desta forma, o serviço e o volume de material usado e arquivado.
Seria melhor aglutinar todas informações em um único documento, incluindo a coleta
de impressões digitais. Isto permitiria, dentre outras vantagens, uma rápida e segura
digitalização e processamento, otimização de espaço e das etapas operacionais. Evitar-se-ia,
assim, a fragilização da segurança no processo e manipulação das informações.
125
Deve-se mencionar o uso político-partidário da confecção da cédula de identidade. O
que é um direito de cidadania transforma-se em moeda política. Em especial às vésperas de
eleições. Neste período surgem os ditos “mutirões da cidadania”. A convite de prefeitos e
políticos municipais, caravanas de datiloscopistas do IITB são enviadas ao interior do
estado. Sob o mote de ampliação da cidadania esconde-se o real objetivo: troca dissimulada
de identidades por votos. Alguns datiloscopistas aceitam cumprir com satisfação tal ordem,
por dois motivos: ganho de diárias nestas viagens e eles próprios interessados em alavancar
suas próprias carreiras partidárias ou de outrem.
O processo de despejo de carteira de identidades muitas vezes atropela a devida
pesquisa dactiloscópica. Algumas vezes na ânsia de emitir um maior número de
identidades, os datiloscopistas retornam das viagens com formulários em branco para serem
preenchidos no IITB. Isto implica na ausência de pesquisa, cadastramento com dados
errados e uma série de outros contratempos que não resultará no propósito original da
missão. Muito pelo contrário, facilita e favorece a fraude, cujas conseqüências conhecemos.
É na verdade um mutirão anticidadania.
É muito comum nos períodos eleitorais, a profusão de datiloscopistas com trânsito livre
no IIITB, para emitir identidades.. Existe no Instituto um posto especial isento de taxas
com fins especialmente políticos (muito usado nas eleições de 2000). Houve candidatos
datiloscopistas que chegaram a pintar muros, panfletos e veículos com o codinome de
“fulano-de-tal” da identidade.
Documentoscopia é a disciplina que tem por finalidade verificar a autenticidade ou a
falsidade de um documento, bem como determinar sua autoria. A cédula de identidade
deveria possuir as mesmas características do dinheiro fabricado pela Casa da Moeda:
modelo único e certos requisitos técnicos. Assim, qualquer cidadão teria mais facilidade em
126
reconhecer uma cédula de identidade legítima, pois ela seria igual à sua própria cédula de
identidade. Todas teriam, portanto, as mesmas características. A padronização apenas do
impresso, como ocorre, não constitui medida de todo satisfatória, pois obtido o que se
chama de “espelho” (impresso em branco), basta preenche-lo em qualquer tipo de máquina,
colar uma fotografia, apor uma impressão digital e plastificar para, com isso, se contar com
uma cédula de identidade.
A cédula de identidade deveria apresentar requisitos não só no tocante a impressão,
como também no tipo de preenchimento, fotografia, sinete de segurança sobre a foto e
plastificação. A falsificação nada mais é do que uma imitação e quanto mais dificuldade
impormos a essa imitação, tanto mais estaremos desestimulando e entravando uma
contrafação (Perello, 1976).
Registre-se que a numeração das carteiras de identidades é feita de forma seqüencial
e manualmente atribuída ao cidadão através de um carimbo (que pode ser fabricado com a
mesma fonte em qualquer esquina). Método similar ao usado quando da inauguração das
atividades do IITB há mais de 90 anos.
As formas de cadastramento não obedecem a uma padronização, ou seja, depende
do local onde o cidadão procure fazer sua identificação. Por exemplo: no IITB é preenchido
um formulário por impressora ligada a um computador que não armazena os dados. Ou
seja, se a máquina for desligada todos os dados ali digitados estão comprometidos. Já nos
Postos de Identificação (PI) as informações são datilografadas em antiquadas máquinas de
escrever. No IITB e nos PIs, o espelho se apresenta num conjunto de frente e verso
enquanto no Centro de Atendimento ao Cidadão (CAC), o espelho é fornecido em duas
partes separadas, frente desconectada do verso, sem manter qualquer padrão tanto no
127
fornecimento quanto na aparência, a fim de garantir a segurança e autenticidade do
documento.
Com o CAC em atividade o controle de numeração ficou seriamente comprometido.
O IITB determina uma numeração ”xis” (digamos: 001 a 500) e outra para o CAC
(digamos: de 501 a 1000). Quando a numeração do IITB chegar a 500 pulará para 1001
enquanto o CAC recebe outro lote de numeração visando um ponto futuro. Além de não se
ter um panorama geral da sequência numérica, estes saltos e sobressaltos na numeração
permitem que ocorram a emissão de carteiras de identidade com sexo trocado, o mesmo
Registro de Identidade para duas ou mais pessoas ou Registro de Identidade múltiplos para
uma única pessoa.
Como se nota, o IITB conduz de forma solta e despregada, sem ter a mínima
possibilidade de se controlar desde o fornecimento dos lotes de espelhos até a entrega de
carteiras, que também requer cuidados específicos. Deveria existir, isto sim, um estrito
controle em todas as etapas da confecção da carteira de identidade, e padrões regulares de
observância para quesitos de segurança não somente vis-à-vis agentes externos, mas,
também, contra falhas internas.
O modelo hoje adotado no processamento dactiloscópico no IITB é mais que
ultrapassado. Diríamos até que é arcaico, pois é usada a técnica onomástica (baseada em
nomes). Embora esta técnica seja mais rápida que a pesquisa datislocópica ela é ineficiente,
pois o que garante a identidade do cidadão não é o nome mas a identificação através das
impressões digitais.
Nas dependências do IITB existem cerca de mil arquivos, cada qual com dezenas de
milhares de dados sobre os cidadãos, registrados em frágeis papéis de péssima qualidade,
além de centenas de livros, alguns já mofados ou destruídos pelas traças. São milhares de
128
registros sobre os cidadãos que, expostos a um frenético manuseio diário, ficam sujeitos a
um acentuado desgaste no documento. Com risco para as informações ali contidas.
Convém lembrar que outro motivo a contribuir para o abarrotamento das
informações no IITB, deve-se a centralização. Isto é, todas as informações do estado
passam pela sede única do IITB no Recife. Seria viável a descentralização e interiorização
do atendimento ao cidadão demandante da identificação civil através de pólos
interiorizados que funcionariam on-line. Isto, inclusive, evitaria o trânsito perigoso de
identificadores que muitas vezes, chegam a viajar 10 a 12 horas em perigosas estradas
portando cédulas de identidade.
A própria garantia de cidadania inerente a Carteira de Identidade é posta em cheque,
quando se sabe que nas atuais condições do IITB, se um infrator em potencial conseguir
cinco distintas certidões de nascimento, poderá obter cinco carteiras de identidades
diferentes.
Atualmente, caso alguém perca ou tiver a carteira de identidade roubada ou furtada
corre grande risco de ser processado indevidamente, e até ser preso. Por exemplo, um
criminoso, ao ser preso, apresenta uma carteira de identidade que não é a sua. A polícia não
percebe a falha e desse modo o crime e o futuro processo são atribuídos ao dono da Carteira
de Identidade. O mesmo só descobre a confusão quando é parado pela polícia ou vai até
uma delegacia registrar uma ocorrência. O caso não é tão difícil de ser solucionado quando
o criminoso continua preso, pois facilita a comprovação da falha. No entanto, se ele fugir,
as coisas complicam. É que, oficialmente, o verdadeiro dono da Carteira de Identidade
passa a ser considerado foragido. Basta ser parado em uma blitz da policia para ser detido
(Alves, 1998a).
129
Há uma solução técnica para isto, como comprova a Polícia Civil de São Paulo que
criou um sistema de bloqueio de carteiras de identidades. Lá o registro de ocorrência
permaneceu como era. O que mudou foi o comportamento do delegado que ficou obrigado
a comunicar ao instituto de identificação a perda, roubo ou furto da identidade. Tal Instituto
processa a informação e a armazena no cadastro criminal e civil da empresa de
processamentos de dados do Estado. Estando os dados informatizados, quando alguém for
preso com um documento alheio, a descoberta da farsa será imediata. Bastará apenas o
delegado puxar os dados cadastrais no computador para descobri-la, pois a tela irá informálo
que o número do Registro de Identidade está bloqueado por algum motivo. Isto ajuda não
apenas a evitar a prisão de pessoas por engano, mas dificultará a abertura de contas
correntes e crediários fantasmas.
Uma outra inovação da polícia paulista, mas que ainda não mereceu a devida
atenção das autoridades pernambucanas, foi a implantação do AFIS (Automated
Fingerprint Idenfication System, Sistema Automatizado de Identificação de Impressões
Digitais). O AFIS permite o armazenamento, em disco óptico de impressões digitais, e é
conhecido como ´Sherlock Holmes virtual´. Como assim? Vamos supor, que um
desconhecido comete um crime e não há suspeitos nem testemunhas. A polícia encontra
apenas fragmentos de impressões digitais na cena do crime. Sem o AFIS, o caso seria dado
como encerrado por falta de provas. Simplesmente, sem suspeitos, não há como fazer
comparação de impressões digitais nos 15 milhões de fichas arquivadas no ITB.
O AFIS permite, que mesmo sem suspeito, a identificação se torne possível. E mais:
quase que de imediato. Desde, obviamente, que a impressão digital esteja armazenada no
sistema. Para isso, bastará inserir no computador, por meio de scanner, um pequeno
fragmento de impressão. Com o AFIS, a identificação dos passageiros paulistas mortos no
130
acidente como o Fokker-100 da TAM, em 1996, seria imediata. Além disso, os Estados
brasileiros que implantarem o sistema, estará interligado aos bancos de dados, o que
possibilitará a identificação de qualquer pessoa que more nos estados participantes da rede
virtual.
Diante do exposto, fica bem claro que uma informação solicitada por uma
autoridade, seja ela judiciária ou policial, incorre num processo lento, desgastante,
ineficiente e muito oneroso para o Estado. O Datiloscopista, indivíduo habilitado para
exercer uma tarefa técnico-científica de procedimentos periciais-papiloscópicos, perde
horas de trabalho como mero arquivista em meio a um arquivo saturado e caótico, quando
deveria estar canalizando suas energias e conhecimento para exercer tarefas essenciais e
afetas a natureza do trabalho datiloscópico que preserva as garantias do cidadão.
Frise-se que o desgaste também é humano. No IITB, as operações pertinentes ao
estoque, manipulação e tratamento das informações (arquivos dactiloscópicos civil e
criminal) são realizadas em precárias condições ergonométricas e de insalubridade.
Expondo, deste modo, os funcionários a várias doenças profissionais, destacando-se as
denominadas “LER” (Lesões por Esforço Repetitivo), além das doenças transmitidas por
fungos proliferantes em tais sistemas de arquivos, sabidamente, desaconselháveis aos
manipulantes e à segurança e conservação das informações ali contidas.
Ressalte-se a inexistência de extintores de incêndio, goteiras sobre formulários e
prontuários, sujeiras (fezes, urina de rato, pó, fungos, micoses etc), temperaturas superiores
a 40o, e até mesmo um vestiário com chuveiro. O descaso com os recursos humanos
também se faz presente no parco investimento no preparo intelectual de seus técnicos.
Embora o regulamento, de 1947, do Gabinete de Identificação de Pernambuco no seu
Artigo 4o, XI, estipule que compete a instituição a criação de uma biblioteca especializada,
131
isto não foi posto em prática. Os datiloscopistas não possuem um lugar onde possam se
atualizar com o que há de mais moderno em sua ciência.
Os arquivos de aço com gavetas móveis estão ultrapassados, mesmo os tipos estante
recentemente adquiridos. São celeiros de fungos, além de ocuparem vastos espaços e não
garantirem a segurança e o sigilo requeridos aos documentos depositados. Este problema
poderia ser sanado com a digitalização das informações e documentos que poderiam ser
estocados em discos. Contudo, cogita-se de alternativas como a da microfilmagem, recurso
arcaico, inseguro e de alto custo, coisa do século passado. Com a tecnologia disponível e
sem grandes investimentos, todas as informações indevidamente estocadas no IITB seriam
alocadas seguramente em pouco espaço, liberando o galpão para outras atividades.
Tal como o IC, o IITB também já foi um órgão de referencia nacional. Só que nos
idos dos anos 40 e 50. Hoje, às vésperas de eleições mais parece uma nervosa linha de
montagem para a fabricação de carteiras de identidades, atropelando-se o aspecto segurança
da cidadania representado por tal documento, o que só pode ser garantido pela preservação
e modernização da qualidade dos procedimentos dactiloscópicos, o que implica na correta e
abrangente aplicação das minúcias técnico-científicas da Papiloscopia.39
A execução de atividades periciais na Polícia Civil compete aos Institutos de
Criminalística e de Medicina Legal. Contudo, apenas os dois últimos órgãos contam com
técnicos de nível superior para atender as perícias daqueles setores. A Perícia
Papiloscópica e Necropapiloscópica é realizada, paradoxalmente, por técnicos de nível
médio. São os datiloscopistas policiais lotados no IITB. Desse modo, consubstancia-se,
39 Papiloscopia é a ciência que estuda as impressões papilares e a identificação por meio das mesmas. Dividese
em três áreas: datiloscopia (impressões digitais), quiroscopia (impressão palmares) e podoscopia
(impressão plantares).
132
conseqüentemente, a desigualdade no tratamento de tal tarefa na Polícia Civil de
Pernambuco.
Existe um acórdão do Superior Tribunal Federal dando ganho de causa aos
Papiloscopistas do Distrito Federal na efetivação do cargo de Perito Papiloscópico. O
Instituto de Criminalística, através dos Peritos Criminais, entrou com a Ação Direta de
Inconstitucionalidade no. 1.4773-3 contra o fato das perícias papiloscópicas virem sendo
realizadas por peritos papiloscopistas. Acórdão do STF indeferiu, por unanimidade, a
medida liminar em 12 de setembro de 1996. O Ministro Octavio Gallotti relator do caso
assim se expressou:
“Tudo contra que se insurge o Requerente (...) não passa de disputa relativa à distribuição
de atribuições entre dois órgãos (...) da Polícia Civil do Distrito Federal, ou seja, perícias da
natureza datiloscópicas devem ser realizadas por peritos criminais (Instituto de
Criminalística) ou por papiloscopistas (Instituto de Identificação).
A experiência de escolaridade de nível superior previstas nas leis processuais (art. 159, §
1o, do CPP e art. 145, § 1o. do CPC com redação dada pela Lei 7.270/84) é condição
estabelecida para os peritos judiciais, não para os integrantes da Polícia Civil (...)
(...) Ante o exposto, indefiro o requerimento da medida liminar.”
A Polícia Federal tem, também, em seus quadros o perito papiloscopista como
função de nível superior. No Estado do Espírito Santo, a Lei Estadual Nº 4.997/94
implantou a nomenclatura de Perito Papiloscopista, aos cargos de Papiloscopista e
Identificador Datiloscopista, além de passá-los de nível médio para nível superior. O Estado
do Amazonas através da Lei Nº 2.271/94, incluiu no Quadro de Carreira por Categoria da
Polícia Civil o Papiloscopista como nível superior.
133
Em Pernambuco, trabalham contra tal ascensão o Perito Criminal e alguns
Delegados de Polícia. O Perito Criminal enxerga a atividade de papiloscopista não como
pericial, mas burocrática. Confunde a atividade burocrática de emissão de carteira de
identidade com a de perícia datislocópica. E assim, não admite dividir espaço com os
datiloscopistas. Já os delegados não trabalham pela ascensão funcional dos datiloscopistas,
pois isto implicaria, provavelmente, na perda de status e do comando do IITB. 40
As atividades do Perito Criminal e do Perito Papiloscopista são, todavia,
complementares em vez de excludentes. Afinal, o Perito Criminal trabalha na dinâmica
operacional do local do crime e o papiloscopista no detalhe concreto da identificação do
criminoso. Em alguns estados, essas atividades já são realizadas em equipe composta,
harmonicamente, por peritos profissionais da papiloscopia, na maioria dos casos, na mesma
viatura, quando se trata de levantamento pericial em local do crime. Não procede, portanto,
o pensamento em classificar as atribuições dos profissionais da papiloscopia como um ramo
simplista da criminalística.
Esta prática está consoante com o Código de Processo Penal (CPP) que estipula no :
“Artigo 6 – logo que tiver conhecimento da pratica de infração penal, a autoridade policial
deverá:
VII- Determinar, se for o caso, que proceda o exame de corpo de delito e a quaisquer outras
perícias (incluindo papiloscópica, conforme determinação das autoridades policial e judicial
anexas).
VIII- Ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer
juntar aos autos suas folhas de antecedentes” e no:
40 Decreto No. 20.581, de 25 de maio de 1988, estipula que o IITB será dirigido por um Diretor Executivo
nomeado pelo Governador do Estado. Qualificam-se para o cargo delegados e Peritos Criminais. Na prática,
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“Artigo 166- Havendo dúvida sobre a identidade do cadáver exumado, proceder-se-á ao
reconhecimento pelo Instituto de Identificação (...) lavrando-se auto de reconhecimento e
de identidade, no qual se descreverá o cadáver...”.
Como se nota, o exame de corpo de delito, aí incluso o local do crime ou
contravenção, previsto no CPP, não é exclusividade desta ou daquela categoria e sim objeto
de trabalho de vários especialistas, de formação diversas, tais como Peritos Criminais,
Peritos Médicos Legistas, Peritos Papiloscópicos etc, que prestam seus serviços como
auxiliares de justiça.
O Decreto 20.581, de 25 de maio de 1998, aprovado pelo Legislativo Estadual,
regulamentou as funções e o quadro de cargos e funções gratificadas da extinta SSP. Tal
instrumento garantiu várias atribuições ao datiloscopista que até o momento não foram
implementadas, tais como o levantamento pericial-dactiloscópico em local de crime,
identificação neonatal, identificação necropapiloscópica, retrato falado e departamentos
regionais de identificação.
A vida do cidadão demandante de identificação civil no interior do Estado seria
facilitada caso fossem criados pólos interiorizados que funcionariam on-line. Afora isto, tal
medida evitaria o trânsito perigoso de identificadores que muitas vezes, chegam a viajar 10
a 12 horas, do interior à capital, portando cédulas de identidade.
Existe uma explícita crise de competência.que afeta o relacionamento entre o IC e o
IITB. Para se ter uma idéia, um Perito Criminal do IC se achando legalmente investido,
realizou o levantamento papiloscópico no apartamento do conhecido publicitário Paulo
Falcão assassinado, no ano de 2000. Quando da realização da pesquisa papiloscópica dos
fragmentos dígito-papilares pelo datiloscopista do IITB revelou-se que as únicas
os delegados monopolizam o cargo.
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impressões colhidas no local pertenciam ao próprio Perito Criminal que não teve nem o
cuidado de usar luvas, tão pouco de usar métodos e instrumentos dactiloscópicos
apropriados no cenário do crime. Ninguém foi responsabilizado por tamanho descaso
profissional.
Este exemplo, é usado pelos datiloscopistas para ridicularizar a atuação do Perito
Criminal. Com essa crise de competências e o velado impedimento de exercício pericial ao
datiloscopista que é treinado e especializado para tal propósito, quem perde é a sociedade
que assiste impotente tal despropósito. No caso específico, as acusações contra os suspeitos
não foram provadas.
Torna-se imprescindível a reestruturação funcional adequada, transformando-se a
nomenclatura do Cargo Datiloscopista Policial para a de Perito Papiloscópico Policial,
passando a categoria a integrar o quadro de carreira de Nível Universitário do Serviço
Público do Estado, como já ocorre em outros Estados da Federação que reconhecem a
similitude de atribuições e comportamento entre Datiloscopistas Policiais e Peritos
Criminais.
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